Virtude
De entre as ciências mais
elásticas que a Terra já viu encontra-se a da etimologia. Desde o extremo da
mais aberrante fantasia (a “pantera” chama-se assim porque é amiga de todos os
animais, diziam etimologistas medievais), até ao hipercriticismo germânico do século
XIX (grande construtor de sólidos mas secos edifícios), de todos os extremos
provou esta actividade.
Seja como for, em que grau se
queira usar desta ciência, e com que rigor, sempre tendo algumas cautelas,
muito se pode aprender com ela. As palavras que usamos não são inocentes. Para
um jurista “fé pública” tem um significado técnico, que não se confunde com as
peregrinações de Fátima, e “placebo” para um médico não se trata de uma entrega
do seu corpo aos prazeres do doente como o significado latino poderia dar a
entender. Só conseguimos falar com as palavras que temos. E qualquer crítica
destrutiva da etimologia deveria ter isso em conta quando a desdenha.
Uma das palavras que se encontra
cada vez mais relegada para sedimentos mais recuados na nossa linguagem é a
virtude. Ainda se manifesta em jargão económico nos “círculos virtuosos”, ainda
é admitida na física nas partículas virtuais, mas sempre desventrada do seu
conteúdo central. Época pudica que fala sempre ao lado do principal, preocupada
com a pureza ritual, a nossa era é lesta em enterrar o essencial, em evitar o
decisivo.
Vejamos as etimologias. Virtude
parece ter parentesco com “uir”, varão, e “uis”, força. Falo em parentescos
porque por vezes não há apenas filiações semânticas, mas igualmente casamentos,
associações, contactos. As palavras são seres sociais, adquirem tiques dos
vizinhos ou dos seus amantes. A virtude é a qualidade de quem é varonil, de
quem tem força. Maquiavel restaurou este uso indo-europeu. O renascimento foi
tanto antiquário como renovação. Tenho mesmo dúvidas que se possa ser uma coisa
sem a outra.
Em grego “aretê”, palavra tão
complexa na sua História que não posso nem sequer enunciar os seus mais simples
desenvolvimentos. Consta que etimologicamente terá origem no indo-europeu em
palavra que significa o homem livre por excelência, o nobre, o “arya”. O herói
também. Tem virtude quem tem força, poder, quem é livre, quem é nobre no fim de
contas. Sem poder não há liberdade, é esse o estado do nobre.
O cristianismo veio a dar, como
estoicismo, uma coloração bem diversa a esta virtude. Ser livre, o verdadeiro
poder, decorre de uma luta consigo mesmo, para atingir a serenidade, a paz, o
amor, consoante os casos. Todo o novo vocabulário positivo recebe de uma
linguagem aristocrática, viril, guerreira. O herói das virtudes e as virtudes
heróicas, o poder sobre as paixões, a luta da alma. A nobreza de carácter, o
espírito livre, os livres-pensadores.
Mais uma vez encontramos aqui a fusão
entre o cristianismo e o paganismo indo-europeu. É aliás difícil destrinçar nos
textos, mesmo de entre os mais fervorosos crentes das épocas mais crentes, o
que é realmente cristão e o que é pagão indo-europeu. A mulher deve ter orgulho
na sua virtude (pecado de orgulho?), a resignação heróica é muito mais estóica
que cristã por vezes (as cartas de Heloísa a Abelardo, por exemplo).
Como prometi que analisaria o que
subtende à política preciso por isso de tentar dar uma explicação deste escondimento
da virtude. Já sabemos para onde foi. Para o vocabulário técnico, encapotada,
mascarada, asseptizada. Como é hábito de uma época de pudibundice como a nossa.
Mas porque se esconde a virtude do espaço público? Porque é ridículo hoje em
dia um ministro, um jornalista, um empresário, dizer que é virtuoso ou
virtuosa?
A primeira razão já foi
enunciada. A época é pudibunda. Como é costume, as épocas não reconhecem nunca
os seus pontos de pudibundice ou pudor. Mas eles notam-se sempre por um teste
simples: se fazem corar. Uns por real pudor, outros por pudibundice. O pudor
enriquece, a pudibundice rigidifica. Ora o horror à virtude e à palavra que a representa
apenas gera rigidez. Faz corar por rigidez.
Por outro lado, sejamos generosos
e concordemos com eles. Não são virtuosos, são destituídos de virtude. As
pessoas têm direito de ver satisfeitas as suas reivindicações. Não afirmam
terem, em grande medida porque realmente não têm.
Mas porquê este horror à virtude?
Porque esta dimensão do ser humano e não outra?
Bom, para começar há que ser
justo. A virtude não está sozinha. Igualmente a nobreza, o pudor e outras
palavras são afastadas do espaço público. Corresponde a um processo de massa de
expulsão de tudo o que respeita ao mais íntimo do ser humano do espaço público.
Funcionaliza-o, torna-o de confiança, previsível, como uma máquina. Daí a
necessidade de se exigirem – maquinais – manifestações de bons sentimentos
pelos homens públicos.
Exige-se que os homens públicos
sejam destituídos de intimidade, surjam despidos dela. Isto nada tem a ver com
pudor ou contenção. Exige-se que os sentimentos sejam também eles previsíveis e
catalogáveis. Não se admite que o homem público tenha maus sentimentos
(elitismo, vingança, por exemplo) e os que manifesta têm de pertencer a um catálogo
de bons sentimentos. A virtude é coisa demasiado íntima para existir no espaço
público, e demasiado ridícula para se admitir no privado.
Mas tem de se reconhecer
igualmente que todo o sistema de educação, seja formal, seja familiar, social
ou outros, varreu a palavra virtude do seu campo de actuação. Não se instila
virtude nas crianças mas apenas comportamentos adequados. Uma conformação
exterior, que fez de conta que o interior não tem impulsos negativos. O
pensamento meramente funcional, bem mais antigo do que o julgam os modernos, alastrou-se
como um cancro para todos os níveis do comportamento, e mais importante, dos sentimentos,
na sociedade.
Que políticas gera ou pode gerar
o homem sem virtude? Desde logo uma política toda ela virada para o comportamento,
para o exterior, para a aparência. O que esteja fora do escrutínio público é
apenas alvo do seu capricho. O que modera as suas acções é apenas o efeito público
e não o intrínseco desvalor da conduta. Como sabe que apenas o que é
publicamente sindicável lhe limita o caminho tentará esconder o mais que pode.
É certo que em todas as épocas houve quem tentasse esconder. Mas quem é educado
no valor absoluto da virtude, sabe que pode ser julgado por instâncias secretas
que perscrutam as suas mais íntimas intenções ou seus mais secretos actos.
Demitindo-se este juiz interior o espaço não publicitado é pura arbitrariedade.
Na política, a sua técnica é a do
facto consumado. Aceita-se a Turquia como candidata sem informar previamente o
público e muito menos sem lhes pedir a opinião e ainda menos a decisão.
Decide-se seguir para a guerra do Iraque sem curar se os soberanos (os cidadãos
numa democracia parece-me) estão de acordo ou não.
Na ideia da projecção histórica o
seu paradigma é a dos tesouros afundados. Fica por isso no esquecimento da
História, porque se alguma substância teria, este homem público deixa-a toda
submergida.
Mas sobretudo, sendo destituído
de virtude, é destituído de real força interior. A sua vida é uma perpétua
obsessão com a protecção da sua fraqueza. A defensiva anima-o, só ela o motiva.
Defende-se da grandeza, e tenta espezinhá-la. Por inveja, mas por sensato
instinto de inteligência. Sabe que o espaço que ocupa teria sempre muita gente
mais qualificada para o preencher. A sua vida é sempre um conjunto de “por
exclusão de partes”. Só está onde está, não por ter sido escolhido, mas por os
outros terem sido afastados. O deserto, Átila, os seus heróis. Daí que apoie a
entrada dos turcos na União Europeia. Gosta de termos de comparação que não o envergonhem.
É este espectáculo que nos é reservado.
Pessoas sem virtude, sem força interna, sem nobreza. Foi essa a sua condição de
subida, precisam de a manter para sobreviverem. Mas estes pobres coitados são
apenas herdeiros das bermas de onde vieram, e onde em boa verdade ainda estão.
Culpados, reais culpados, são todos aqueles a quem foi dado o poder de
soberania de os pôr onde estão. Numa democracia, sem lugar para dúvidas, todos
nós.
Alexandre Brandão da Veiga
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