Está agora na moda uma
figura bárbara entre os editores: o «editing». O simples facto de não haver uma
palavra portuguesa que se lhe adeqúe diz mais do que parece. A sua tradução
poderia ser «melhoramento» (em nome de que critérios?), ou «censura prévia».
O «editing» é de origem
anglo-americana e não lhe fica mal que o seja. O problema é que mais uma vez em
Portugal se importa por metade. Como nos livros de gestão são lidos os
capítulos em que se pretende aumentar a eficiência e a produtividade dos
trabalhadores, esquecendo-se a parte em que estes têm de ser efectivamente
motivados, respeitados, da mesma forma se importou esta prática esquecendo o
contexto em que faz sentido.
Nos seus países de
origem, o «editing» tem a ver com a concepção do mercado livreiro como um
mercado - nem mais nem menos - e o livro como um produto. É em muitos aspectos empobrecedor,
mas ao menos tem uma coerência sistemática. É que, ao lado do «editing», está
uma perspectiva clara de mercado, e verdadeiros mecanismos de promoção dos
autores. Ao lado do «editor» existe um «agent», alguém que representa o autor e
o faz comunicar com os centros de produção e distribuição livreiros.
O livro como produto é
pensado de montante a jusante como um bem a escoar num mercado. Em parte triste
visão, mas ao menos coerente. Mas, quando vemos a ineficácia da edição
portuguesa na escolha de livros, autores e traduções, e as tentativas por vezes
bem intencionadas, mas raramente eficientes elas mesmas, de os divulgar,
percebemos que o «editing» em Portugal tem uma função bem diversa. Não é o «aperfeiçoamento»
de um produto realizado na cadeia que vai do autor passando pelo agente, o «editor»
e o «publisher», mas algo inorgânico, metido no meio da engrenagem, sem função
bem definida.
O «editing» fica pois
reduzido a ser um mero exercício de poder. O autor, já esmagado pelo pagamento
de percentagens autorais ridículas (sendo o único autor da obra seria de
esperar que a maioria do preço do livro lhe fosse dirigido, mas na prática é
absorvido pela distribuição), vê-se assim nas mãos de uma criatura que corta,
manda acrescentar, modificar, polir.
Perguntemo-nos: com que
autoridade? Um «editor», se sabe tanto como fazer livros, porque não os faz ele
mesmo? Especialista do mercado, podemos admitir, só se legitimará caso seja um
eficiente profissional de mercado, que consegue fazer chegar o livro ao mesmo.
Mas, ainda assim, há que perguntar: Se o livro for tratado como um mero produto
comercial, no fim de contas ganharemos todos?
Não sejamos lamechas.
Grande parte dos livros serão na melhor das hipóteses produtos comerciais. O
melhor que podem almejar é vender bem. Nada mais. E não é pecaminoso. Nos
países do continente europeu existe por vezes uma pudibundice exagerada em
relação à sacralidade do livro e da leitura que se manifesta como mais um
aspecto de uma religião sucedânea. A sacralidade da cultura esconde
frequentemente uma mera desculpa para se esquecer de pensar o sagrado. Que haja
livros que sejam bons produtos comerciais não me parece de escandalizar. É
positivo que assim seja. Dão prazer às pessoas. E antes um livro que dê prazer
às pessoas que o que apenas as enjoa sem lhes dar nada em troca.
Da mesma forma a
sacralização da leitura, tendo em conta que a maioria são maus livros, esquece
que a leitura tende a estragar o bom senso a quem não tem capacidade de a digerir.
São demasiadas as vezes que vemos pessoas com o juízo fragmentado por
informação que não são capazes de processar, e atirando-se como náufragos a
conceitos que se lhes escapam das mãos. Da mesma forma, respeitar um livro só
porque o é apenas mostra que não se tem critério.
Dito isto, também não
faz sentido cair no extremo oposto. A produção e distribuição livreira escondem
várias realidades, da mesma forma que um restaurante pode ser uma mera cadeia
industrial ou centro de genuína criação gastronómica. Do mesmo modo, tratar o
livro apenas como um produto comercial, sempre e apenas, tem como efeito pernicioso
serem escolhidos os medianos, os nem tão maus que sejam expulsos, nem os tão
bons que sejam incompreendidos.
Sob a palavra «mercado»
escondem-se muitas realidades diversas, é certo. Os mecanismos do luxo são bem
diversos do mercado do pão para os pobres. Mas, de uma forma ou de outra, as
suas regras comuns exigem alguma uniformização para que o produto seja
facilmente compreendido pelos potenciais clientes.
Da mesma forma, haver
uma criatura supostamente especialista do mercado, que «conhece» o que o
mercado «quer» pressupõe que o que o mercado «quer» é bem conhecido, e que o
mercado pode querer além do que conhece ou pode congeminar.
Mas estes são vícios
gerais da figura do «editing» nos mercados onde ao menos tem coerência e se
integra numa efectiva cadeia de produção. Já seriam vícios bastantes. Bem mais
grave são as suas desvantagens quando se aplicam num contexto em que esse
mercado não é tão evidente. Nesse caso, o «editing» torna-se um mero exercício
de poder, um apagamento de autoria. Apenas nos dá vontade de dizer: «queres
melhorar? Faz tu o livro se fores capaz». Nem legitimado como o crítico
competente, nem dotado como o autor, o «editor» vive de imperar sobre obra
alheia e, não tendo o poder de fazer própria, fazer da sua impotência lugar do seu
poder. Parasita da obra alheia resta-lhe apenas um poder nu, a capacidade de meter
a mão em seara alheia, que o faz sentir criador, precisamente – de segunda mão.
A mão invisível do mercado revela mais uma vez que o seu segredo é de pouca
monta. De adjuvante passa a carteirista da obra alheia.
Alexandre Brandão da
Veiga