terça-feira, 20 de maio de 2014

Józef Maria Bocheński


 
Na História da lógica que me lembre tive dois conjuntos de mestres: o casal Kneale e Bocheński. Confesso que sempre achei misterioso o que leva apesar de tudo tanta gente a estudar lógica. Poucas actividades dão tão pouco prestígio, realizações práticas imediatas ou visões mais ou menos directas do mundo. Um físico, mal ou bem, pode aspirar a um grau de notoriedade muito maior, maior respeito público, e pode arrogar-se de descrever mais ou menos bem a realidade.

Um lógico hoje em dia está destituído da ideia de que estabelece as leis do pensamento (a própria lógica reusou a tarefa e as neurociências ocupam-se dela com gosto), o que descreve parece ser coisa nenhuma, e ao mesmo tempo passa pelo exemplo máximo do inútil. É evidente que bem sabemos que não é assim. Se posso estar a escrever à frente de um computador é graças à formalização de linguagens que começou na lógica. Mais útil não pode ser.

Mas como o argumento da utilidade só é essencial numa época de caixeiros-viajantes que não conhece mais nada, não me parece, nem o mais importante, nem o mais decisivo. A lógica é uma actividade de uma imensa beleza, em que se atingem algumas das mais potentes capacidades de concentração e pensamento humanos. Para quem não tem preconceitos contra a metafisica, como é o meu caso, é importante salientar que não tem igualmente preconceitos contra a lógica. Uma não vive sem a outra e vice-versa.


Entre as duas Guerras havia dois lugares onde estar para quem queria fazer lógica. Ou a Áustria, ou a Polónia. Na Áustria Carnap, Schlick, Gödel, Neurath. Na Polonia Kazimierz Twardowski, Tadeusz Kotarbiński, Kazimierz Ajdukiewicz, Jan Łukasiewicz e o não menos relevante Alfred Tarski a quem se deve grande parte dos estudos americanos na lógica, por ter formado a escola de Berkeley. Se os Estados Unidos têm estudos de lógica, isso deve-se a estas duas nacionalidades, expulsas pelo suicídio europeu da II Guerra.

Dois países aparentemente pequenos, mas que podem ser os mais adiantados do mundo, não no que hoje em dia se chama nicho de mercado, mas antes ninho fecundante de toda a cultura, ciência e tecnologia dos anos futuros.

Por isso é um prazer ouvir Bocheński. Além de me trazer memórias da juventude, é das raras pessoas que deixa adivinhar a sua (por vezes trágica) experiência, que filtra com uma alegre racionalidade. Uma sólida razão que sorri. Que variante em relação a mal dispostos, profissionais da indignação como sucedânea das ideias.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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quinta-feira, 8 de maio de 2014

O «editing»


Está agora na moda uma figura bárbara entre os editores: o «editing». O simples facto de não haver uma palavra portuguesa que se lhe adeqúe diz mais do que parece. A sua tradução poderia ser «melhoramento» (em nome de que critérios?), ou «censura prévia».

O «editing» é de origem anglo-americana e não lhe fica mal que o seja. O problema é que mais uma vez em Portugal se importa por metade. Como nos livros de gestão são lidos os capítulos em que se pretende aumentar a eficiência e a produtividade dos trabalhadores, esquecendo-se a parte em que estes têm de ser efectivamente motivados, respeitados, da mesma forma se importou esta prática esquecendo o contexto em que faz sentido.

Nos seus países de origem, o «editing» tem a ver com a concepção do mercado livreiro como um mercado - nem mais nem menos - e o livro como um produto. É em muitos aspectos empobrecedor, mas ao menos tem uma coerência sistemática. É que, ao lado do «editing», está uma perspectiva clara de mercado, e verdadeiros mecanismos de promoção dos autores. Ao lado do «editor» existe um «agent», alguém que representa o autor e o faz comunicar com os centros de produção e distribuição livreiros.

O livro como produto é pensado de montante a jusante como um bem a escoar num mercado. Em parte triste visão, mas ao menos coerente. Mas, quando vemos a ineficácia da edição portuguesa na escolha de livros, autores e traduções, e as tentativas por vezes bem intencionadas, mas raramente eficientes elas mesmas, de os divulgar, percebemos que o «editing» em Portugal tem uma função bem diversa. Não é o «aperfeiçoamento» de um produto realizado na cadeia que vai do autor passando pelo agente, o «editor» e o «publisher», mas algo inorgânico, metido no meio da engrenagem, sem função bem definida.

O «editing» fica pois reduzido a ser um mero exercício de poder. O autor, já esmagado pelo pagamento de percentagens autorais ridículas (sendo o único autor da obra seria de esperar que a maioria do preço do livro lhe fosse dirigido, mas na prática é absorvido pela distribuição), vê-se assim nas mãos de uma criatura que corta, manda acrescentar, modificar, polir.

Perguntemo-nos: com que autoridade? Um «editor», se sabe tanto como fazer livros, porque não os faz ele mesmo? Especialista do mercado, podemos admitir, só se legitimará caso seja um eficiente profissional de mercado, que consegue fazer chegar o livro ao mesmo. Mas, ainda assim, há que perguntar: Se o livro for tratado como um mero produto comercial, no fim de contas ganharemos todos?

Não sejamos lamechas. Grande parte dos livros serão na melhor das hipóteses produtos comerciais. O melhor que podem almejar é vender bem. Nada mais. E não é pecaminoso. Nos países do continente europeu existe por vezes uma pudibundice exagerada em relação à sacralidade do livro e da leitura que se manifesta como mais um aspecto de uma religião sucedânea. A sacralidade da cultura esconde frequentemente uma mera desculpa para se esquecer de pensar o sagrado. Que haja livros que sejam bons produtos comerciais não me parece de escandalizar. É positivo que assim seja. Dão prazer às pessoas. E antes um livro que dê prazer às pessoas que o que apenas as enjoa sem lhes dar nada em troca.

Da mesma forma a sacralização da leitura, tendo em conta que a maioria são maus livros, esquece que a leitura tende a estragar o bom senso a quem não tem capacidade de a digerir. São demasiadas as vezes que vemos pessoas com o juízo fragmentado por informação que não são capazes de processar, e atirando-se como náufragos a conceitos que se lhes escapam das mãos. Da mesma forma, respeitar um livro só porque o é apenas mostra que não se tem critério.

Dito isto, também não faz sentido cair no extremo oposto. A produção e distribuição livreira escondem várias realidades, da mesma forma que um restaurante pode ser uma mera cadeia industrial ou centro de genuína criação gastronómica. Do mesmo modo, tratar o livro apenas como um produto comercial, sempre e apenas, tem como efeito pernicioso serem escolhidos os medianos, os nem tão maus que sejam expulsos, nem os tão bons que sejam incompreendidos.

Sob a palavra «mercado» escondem-se muitas realidades diversas, é certo. Os mecanismos do luxo são bem diversos do mercado do pão para os pobres. Mas, de uma forma ou de outra, as suas regras comuns exigem alguma uniformização para que o produto seja facilmente compreendido pelos potenciais clientes.

Da mesma forma, haver uma criatura supostamente especialista do mercado, que «conhece» o que o mercado «quer» pressupõe que o que o mercado «quer» é bem conhecido, e que o mercado pode querer além do que conhece ou pode congeminar.

Mas estes são vícios gerais da figura do «editing» nos mercados onde ao menos tem coerência e se integra numa efectiva cadeia de produção. Já seriam vícios bastantes. Bem mais grave são as suas desvantagens quando se aplicam num contexto em que esse mercado não é tão evidente. Nesse caso, o «editing» torna-se um mero exercício de poder, um apagamento de autoria. Apenas nos dá vontade de dizer: «queres melhorar? Faz tu o livro se fores capaz». Nem legitimado como o crítico competente, nem dotado como o autor, o «editor» vive de imperar sobre obra alheia e, não tendo o poder de fazer própria, fazer da sua impotência lugar do seu poder. Parasita da obra alheia resta-lhe apenas um poder nu, a capacidade de meter a mão em seara alheia, que o faz sentir criador, precisamente – de segunda mão. A mão invisível do mercado revela mais uma vez que o seu segredo é de pouca monta. De adjuvante passa a carteirista da obra alheia.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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