segunda-feira, 14 de abril de 2014

Que modelo de homem gera a urbe?

Quando as crianças aprendem algo sobre a urbanização, e se falo de crianças é porque é esse o estalão cultural do actual homem público, aprendem coisas muito simples. Antes o homem vivia no campo e depois passou a viver na cidade. Ficou mais culto, largou o campo e assim acabou a História. Como neste momento pretendo falar entre adultos, temo bem que tenhamos de pôr alguma complexidade na coisa.

O homem que faz a cidade, e não apenas o que nela vive, é sempre um homem duplamente ancorado. Na cidade e na terra. E liga-se à terra de uma dupla ou mesmo tripla forma: na cidade pelo jardim, nos seus limites pela horta limítrofe, longe dela pelo campo, seja ele o latifundium, a propriedade na Ática, o solar, o feudo ou a quinta. Este aspecto é fundamental para se perceber o que é o homem urbanizado no seu sentido nobre. É o que acrescentou algo à sua vida e não apenas substituiu. A sua vida enriqueceu-se por uma dupla experiência, não resulta de uma mera translação.

Este homem duplamente ancorado conhece os ciclos da natureza e as variações da cidade, a dureza do campo bem como as suas delícias, e a agressão da cidade bem como os seus prazeres. Tende a ser realista, maduro, curioso, capaz do confronto, da comparação. É adulto em suma. A lista é infinda destes seres duplamente ancorados. De Séneca a Montaigne, de Madame de Sévignée a Bismarck, de Churchill a de Gaulle, de Plínio a Henri IV.

O que hoje em dia constitui o homem da cidade, de onde se vão recrutar os homens públicos, é de uma espécie bem diversa. É um transmigrado. Nem criador da cidade, que apenas herdou para seu usufruto, nem ligado ao campo, porque os seus antepassados foram dele escorraçados sobretudo por razões económicas. É deste homem que decide em política hoje em dia que temos de curar.

Em primeiro lugar é um homem que vive num mundo mágico, quando se julga racional. Aliás a racionalidade é apenas mais um dos seus mitos. Quantos deles conhecem os princípios de funcionamento de um telemóvel, de um computador, de um carro? Quantos deles conhecem os mecanismos patológicos ou a teoria das áreas monetárias óptimas? Fruem de um mundo cuja complexidade não apenas ignoram mas da qual nem sequer desconfiam.

Em segundo lugar, vive numa total dependência do colectivo quando se julga individualista. Outro dos seus mitos. “Nós hoje sabemos... antes não se sabia”. Esse o seu moto. É que compensa a sua total ignorância do mundo que o rodeia com o facto de o mundo que colectivamente o rodeia já o saber. É um homem demitido, que se demite da sua função de conhecer porque alguém o faz por ele. Dependente pelo conhecimento, é-o igualmente para a sua sobrevivência. Para que possa viver em agregados cada vez maiores, imensas torres de Babel cujo funcionamento global já ninguém pode perceber, depende de estruturas sanitárias, de comunicação, de alimentação, de circulação de bens que lhe escapam totalmente. Mais uma vez o espírito mágico, primitivo entra pela sua vida. O frango aparece já preparado no supermercado, o medicamento em drageias, o serviço bancário na Internet. O mundo não é algo que lhe aparece, é algo que lhe cai em cima. Deixou de ser um caído para passar a ser alvo de quedas.

Vive no medo quando se julga feliz. Desconhecendo e sendo dependente de um colectivo, flutuando em mediações cujos mecanismos desconhece, acaba por ter medo de tudo. Do SIDA, da gripe das aves, da mudança climática, dos terrorismos. Todos esses problemas comungam de uma mesma natureza. São interrupções de uma vida permanentemente bem regulada. Deixando a vida de ser assumida como problema e como tragédia no seu todo, qualquer irrupção da vida no seu quotidiano é considerado como problema e como tragédia. O problema deixa de ser vida para ser apenas interrupção. Nisso os terroristas, que desprezam os europeus, bem perceberam sem serem teóricos, a fragilidade das sociedades europeias. E como estas não se podem no estado actual arvorar-se em paradigmas. Instilam o medo, porque sabem que o medo surge facilmente. Basta pôr em causa o quotidiano. Se bem se reparar é nessa base que trabalha o terrorismo. Na contestação do quotidiano. Andar de avião, de metro, de comboio passa a ser aventura, a poder ser tragédia. Tem medo da velhice, da morte, da decadência, de engordar, de ser infeliz no amor. Sentindo falsamente que a sobrevivência está garantida, dissipa-se no luxo, enfada-se. E enfada os outros.

É um homem infantilizado. Acha que acabar com o SIDA e apenas uma questão de pôr mais dinheiro para a investigação, porque ignora quais os mecanismos da investigação. Não estudou nada sobre investigação científica, a palavra topologia cheira-lhe a uma marca de design, mas tem tudo a dizer sobre a inutilidade de experiências sobre os animais. Olha com condescendência os seus antepassados camponeses, mas acredita na força mítica do Direito Internacional, na vontade de paz dos povos e em que, caso todos os povos tenham o seu paradigma de vida, tudo ficará bem no mundo. No fundo nem lhe passa pela cabeça que assim como é invejado pelo seu nível de vida é desprezado pela sua falta de noção de aventura, ou seja de vida.

É um idólatra do desconhecido. Sendo acima de tudo desconhecedor, é idólatra de quase tudo. Das outras culturas, porque presume conhecer a sua, o que está longe de ser verdade. Da natureza, porque foi dela desenraizado e esquece que o SIDA, as epidemias, as tempestades, os furacões, são igualmente natureza. Como todos os idólatras, julga que a melhor forma de se entregar ao ídolo é amando-o, mesmo que este lhe faça mal.

O verdadeiro homem urbano é o homem duplamente ancorado: no campo e na cidade. O actual homem urbanizado só por generosidade pode ser assim chamado. Em boa verdade não é de urbanização geral que falamos. O que caracteriza a nossa época é uma suburbanização geral. À roda do mundo não se estão a gerar grandes cidades, geradoras de acção política específica, de criação cultural profunda e de actuação sentimental inovatória. O que se está a criar no mundo é um imenso enxame de subúrbios, cidades que são em si mesmo subúrbios, mais que sem centro físico, sem centro espiritual. Do homem duplamente ancorado passamos aos poucos para o homem sem âncora. De duplamente achado, para duplamente perdido. Sem ligação ao campo e sem real ligação à cidade.

Que consequências traz este fenómeno para o espaço público? Em que interessa esta análise para a compreensão da política, e do discurso político actuais? É que o paradigma do suburbano é o comentador desportivo. A criticar tem visibilidade, não por ser marcante como pessoa, mas porque é popular o objecto sobre que se debruça, e porque os rituais consagram a sua viabilidade. É um homem ancorado apenas à sua existência visível. Dedica-se a temas cuja compreensão é elementar e deles faz aparato de arcana sabedoria. Mas o paradigma é o do comentador desportivo também porque na sua maioria discursa sobre um objecto para o qual lhe falta configuração atlética para agir. Muita da classe política hoje em dia sendo barriguda, diz-se desportista. Julgando-se homens de acção, reduzem-se a ser espectadores e a comentar, como se fosse seu papel dissertar, e como se a sua verve claudicante fosse o estalão do próprio agir.

O homem da suburbe não possui conhecendo mas comprando. Compra bilhetes de avião, mesmo que não tenha ouvido falar de Bernoulli. Porque voa o avião irreleva-lhes, quando deveria saber que a pergunta sobre as causas é o que lhe permite andar de avião. Sendo a sua forma de posse a mera compra, em pura magia de contacto, acha que atirar dinheiro resolve os problemas do mundo. Julga que pode comprar a paz. O bárbaro não tem de ser disciplinado, mas apenas comprado. O seu instrumento é o contrato e não a ordem, mesmo que o contrato tenha de ser indigno e a negociação aviltante.

A decisão política fica assim vertida em mero comentário de banalidades. O político faz de conta que declara, quando deveria ser sua função determinar. Abre-se ao diálogo e pede desculpa por decidir. A decisão é amolecida por uma retórica de doçura, de tolerância, que é apenas defesa para a sua falta de escoramento. Quem não tem de onde venha não tem para onde ir. O homem urbano tem mais de um ponto de vista. O suburbano na política, está apenas de passagem. Não tem pontos de vista: apenas vê de relance.


Alexandre Brandão da Veiga
 

 

 

 

 

 

 

 

 

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segunda-feira, 7 de abril de 2014

Kagame e a França

Declaração de interesses: como muita gente, tenho antipatia natural pelos franceses. Sentem-se os melhores do mundo e, no entanto, a arte é mais requintada em Itália, a comida ainda melhor na Bélgica, a música e a filosofia, na Alemanha e a história imperial mais grandiosa em Portugal, em Espanha ou em Inglaterra. A alegria sente-se melhor em Itália ou em Espanha e o humor é mais refinado no outro lado da Mancha. A religião é complexada ou levrevriana. O laicismo tricolor e a Lei da Separação do início do século XX assim a condicionam. Para arrematar, só os franceses muito civilizados serão civilizados. A França sempre teve pretensões que não alcançou. As suas ideias ganharam prática no terror de oitocentos. E a grandeza territorial foi contrariada na Europa de novecentos como em Vichy, na Indochina ou em África onde chegou com apetência tardia. Importa lembrar a cultura enorme, a língua bela, o requinte da moda do urbanismo ou a paisagem organizada.
Digo tudo isto porque considero infames as acusações do Presidente Kagame (que nome) sobre «o envolvimente directo» da França no genocídio do Ruanda, há 20 anos.  

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terça-feira, 1 de abril de 2014

Adolfo Suarez

Adolfo Suarez conseguiu ter visão estratégica e coragem tática. Foi capaz de servir Espanha na continuidade de Franco e na ruptura democrática. Soube integrar a Falange e autorizar o Partido Comunista. Manteve-se direito no lugar de deputado sob as armas e os gritos dos golpistas de 1981: «Al suelo! Todo el mundo al suelo!». Respeitou o Rei em funções e quando demitido do Governo. Era bonito e não parecia vaidoso. Foi Duque por mérito. Podia sê-lo por natureza. Pertence ao melhor no imaginário da política e à melhor realidade do século XX, na Península Ibérica.


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