terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Filhos de Roma e Grécia

Tenho por muitas vezes atacado os avatares da modernidade, uma modernidade algo requentada, é certo, transformada em pós-modernidade, em repetição de si mesma, reactivação de si mesma, mas sempre versão cansada de um movimento que já nasceu do desprezo de si mesmo. Fenómeno estranho na História, a modernidade nasceu pela mão de pessoas que foram os primeiros a desprezá-la, é fruto de desprezo de si mesma. A explicação é mais simples do que parece. Renascida tentativa de ser um novo começo, partir do zero, reactivação do Hapax, imitação em modo menor do cristianismo, a modernidade apenas poderia trabalhar em modo menor, acabando por se esquecer mesmo do que são as suas grandezas.

É verdade. Mas também não queria perder o sentido de justiça. De entre quem não se reclama da modernidade ou pelo menos apenas dela, há muita gente a dizer tontices. Ainda recentemente um eminente catedrático, segundo parece, afirma que: bem sabemos que somos todos filhos do direito romano e da racionalidade grega.

Haveria muito que dizer a propósito, e já o disse bastamente onde melhor cabia. O esquecimento de outros povos indo-europeus que fizeram a Europa, como os germanos e os celtas, que tanto influenciaram a Península Ibérica, como dos eslavos, que marcaram metade da Europa, diz muito sobre a menos que sofrível capacidade de elaboração teórica da academias.

Mas fico-me apenas pela ladainha do direito romano e a racionalidade grega.

Filhos do direito romano? A única coisa que os romanos fizeram teria sido o direito? Quando conquistaram a Península ibérica inundaram Tartesso, os lusitanos e quejandos povos de pareceres jurídicos? Teria sido uma coorte de jurisconsultos que se atirou furiosamente às populações com as suas sentenças? Talvez tenham sido madeiros com a Lei das Doze Tábuas a ser arremessadas sobre as fortificações peninsulares.

Ou então, porque termos de colocar todas as hipóteses, talvez a coisa se tenha passado da seguinte forma. Chegaram os romanos e mostram aos povos peninsulares um arrebatador parecer jurídico. Ao que estes disseram: «ah têm toda a razão, façam favor de entrar e conquistar-nos. Brilhante demonstração jurídica». E entraram os romanos e dominaram...

O direito romano? Será que em Suetónio quando Messalina abre as pernas a metade de Roma criou as situações potestativas? Ou Lucrécia em Tito Lívio quando as fecha cria os bens de mão morta? Não teria sido bem mais a ética romana a ter maior influência sobre nós que o seu direito? Não seria Heloísa bem mais estóica que cristã em muitos dos seus movimentos e não teria sido a moral das elites europeias mais marcada pelos exemplos dos heróis da República romana que pelos ditos de Triboniano ou Paulo?

E a organização política romana, tanta dela prévia ao direito, não nos teria influenciado. Será que Gaio e as suas instituições marcaram mais a Europa que Augusto ou Constantino? Conheço a expressão «augusta presença», «gaia presença» não me parece que tenha acorrido à pena de nenhum escritor.

E será que os romanos não fizeram literatura que influenciou toda a Europa latina até ao Reino Unido? A noção de estilo, da fórmula, da eficácia discursiva, do impacto retórico, do sentido de humor alusivo, com tudo o que tem de bom ou mau, não cobre mais as nossas vidas que a usucapião ou a manumissão?

E quanto à tanto referida racionalidade grega? Cleante faz o lírico hino a Zeus por pura racionalidade? Empédocles filosofa em poesia também com este simples assento? Toda a filosofia grega vive o terror do infinito. Ao contrário do que durante séculos se disse os gregos eram capazes de o conceber. E que que maneira. Ao ponto de os aterrorizar. De Aristóteles, a Plotino, passando pelos atomistas, todos enfrentam o infinito, tentando contê-lo, evitá-lo domesticá-lo, negar o seu valor, ou entregando-se a ele como vencidos resignados. Que tem isso de racionalidade nua?

E não fizeram os gregos arte? A cara de Alexandre em mosaico que nos resta ou a de Lacoonte revela apenas racionalidade?

E a literatura? Não seremos herdeiros dela, bem como da mitologia? Quanto Édipo fura os seus olhos estará a ser puramente racional? Quando Medeia mata os seus filhos, ou Dejanira leva Hércules a vestir peles envenenadas que o levam à morte e o conduzem a deixar-se imolar pelo fogo estarão eles a fazer exercício de racionalidade? E as ménades e os ritos mistéricos? Não é só Jâmblico, mas igualmente Platão que estão bem longe de serem apenas, só, sem mais, exemplos de racionalidade.

O «apolíneo» Apolo lança a peste em Tebas, e é qualificado de «o empalador». Sacrifícios humanos são feitos em Atenas até ao início da Idade Clássica. Racionalidade? Sem mais? Herdámos um produto depurado, pasteurizado, estéril? Ou somos herdeiros da cultura grega, de toda ela, em todas as suas perspectivas?

Estes comentários mostram que, mesmo quando com boas intenções, o fôlego retórico falha, a expressão justa claudica, o conhecimento é escasso. Lamento que no espaço público ainda possam ser ditas tais trivialidades portadoras de injustiça. Injustiça em relação a nós e em relação aos gregos e romanos. Não somos apenas herdeiros, nem principalmente herdeiros do direito romano e da racionalidade grega. Se esses povos apenas nos tivessem deixado tal legado agradeceria muito, mas deixaria o direito para os tribunais e a racionalidade para os mercados. Se não trouxessem consigo coisas bem mais importantes, um fogo criativo, uma imensidade vital, modos de ver o mundo conflituantes entre si, mas por isso mesmo enriquecedores, passaria quitação da herança e passaria a outras aventuras. Graças aos céus a História é bem mais rica que quem nela vive.

Mas vamos mais fundo. Qual é o solo em que assenta este tipo de frases? É evidente que é mera repetição de uma rotina escolar, escoras cómodas e simplistas, que permitem que um pensamento não muito vigoroso descanse. Percursos académicos em que, de tanto se ter de prestar provas do que se sabe, se esquece de saber. É evidente. Mas há algo mais. Esse algo mais é muito simples. Herdámos do passado apenas cascas, estruturas vazias, realidades externas à vida. Os que nos antecederam não tinham linfa, ou pelo menos não nos é possível herdar-lhes a vitalidade. Nomes, na melhor das hipóteses conceitos, é tudo o que podemos herdar. Por detrás destas fórmulas vazias está uma concepção do mundo em que falta algo. O seu nome? Intimidade. Precisamente isso: intimidade. Os antigos não a tinham, não somos capazes de a herdar. Um mundo feito de mortos que nunca viveram, e que nunca foram capazes de nos transmitir a vida.

Habituados à separação entre espaço público e privado, entre racionalidade e irracionalidade, como se o ser humano não fosse uno, entre ciências e letras, entre afectos e pensamento, é um homem amputado que é ensinado nas academias, cortado às fatias, pleno de compartimentos estanques. Nem um homem máquina à moda dos materialistas do século XVIII, mas mais pobre ainda, um homem cómoda, cheia de gavetas.

Triste, triste forma de pensamento, requebrado em alguma rocha exposta aos ventos e sonhando com uma vida que nunca teve. Por isso, este tipo de sínteses me parece inoperante, vazia, sem seiva. Não somos herdeiros do direito romano e da racionalidade grega, porque, caso fossemos apenas disso, sê-lo-íamos de bem pouca coisa, de meras cinzas. Somos herdeiros de toda a vida dessas duas culturas, dessas pessoas que as cultivaram, além de muitas outras. Mas, sobretudo, somos herdeiros de vidas que nos enriqueceram. De gregos e romanos sim, mas não de tão pouco vindo deles.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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