segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Camões e a gratidão

Não sou um camonista. Nunca o fui. A minha erudição sobre Camões está bem longe de ser recomendável e digo-o sem orgulho. Com pena minha, muita da erudição nacional que se fez a propósito dele é tão enfadonha, tão empoada, que me faleceu a vontade de o estudar.
 
Não menos mau que isto, o tipo de elogios que vejo fazerem-se a Camões pelos seus seguidores nacionais é frouxo – ou enfático, o que vem a dar no mesmo.
 
Camões, o maior poeta português... Quantas vezes vimos em dissertações escolares esta frase temerária dita por quem não conhece todos os outros poetas e por isso se atreve a fazer juízos comparativos sem conhecer os comparandos? Português? Porquê essa limitação? Desde Schlegel a Audrey Bell e Winckelmann muitos terão celebrado a imensidão de Camões, a sua natureza única de poeta verdadeiramente épico da modernidade. Para não esquecer a lírica, que esmaga de longe a de Shakespeare e Ronsard.
 
O epíteto de português diminui-o, não por ser insultuoso, mas porque limita a sua grandeza. Camões é grande em qualquer parte do mundo...
 
Não sendo camonista, apenas posso falar como amador. Só há pouco tempo acabei de ler a obra de Wilhelm Storck feita no fim do século XIX sobre a vida de Camões. Nela se conta a história de um fidalgo alemão que, ao ver o abandono do poeta pelos portugueses, se prestou a levar os seus restos para a Alemanha, onde seria mais reverenciado.
 
Não era raro noutras épocas ver este tipo de galanteria. Mais que galanteria, de profundo respeito e horror pelo abandono da grandeza por povos ingratos. Um Malatesta, ao ver que os turcos dominavam a costa grega em que estava sepultado Plethon, fez uma expedição para resgatar o seu corpo e levá-lo para a Itália, onde seria mais venerado.
 
O tal fidalgo alemão devia ter sentido que os portugueses eram como os turcos. Não merecedores de ter o corpo de Camões por o terem esquecido, abandonado, não lhe darem a veneração devida. E tinha razão. Arrisquemos ofender as almas sensíveis, mas em boa verdade até ao século XIX o corpo de Camões foi deixado ao esquecimento, sem honras merecidas.
 
Talvez se julgue que estou a falar do passado, que hoje em dia somos mais respeitadores. Não. Basta pensar num cemitério próximo da Estrela em Lisboa onde está sepultado Fielding, um dos grandes escritores ingleses, que fez um dos maiores sucessos do século XVIII, o bom do «Tom Jones». Por azar dele, morto em Portugal e ninguém se lembra de que ficou em Portugal uma glória das letras inglesas. Se nem Camões foi bem recebido, que poderia esperar o pobre britânico?
 
Storck, a propósito de Camões, lembra que D. Sebastião não teria sido assim tão forreta, e que a tença que recebeu era bastante substancial. Não era mercê de miséria ao contrário do que se disse. Seja; não tenho meios para contestar tal coisa e posso mesmo acreditar. D. Sebastião dizimou vários dos meus antepassados, pode ser muito criticado, mas essa crítica não lha farei.
 
A questão é a de saber a importância que o povo lhe dava. Percebe-se que uma pequeníssima minoria de portugueses lhe reconheciam o verdadeiro valor. Pequeníssima. Que a glória internacional lhe veio próximo da morte, ou pouco depois dela, com Cervantes a chamar os Lusíadas de «o tesouro do luso» e quejandos.
 
Falo de povo? Estou a ser injusto. A maioria do povo, ontem como hoje, embora em graus diversos, está preocupada com a sua sobrevivência, e faz muito bem. Não têm os artistas e pensadores o direito de o criticar se não lhe melhoram a vida. O povo pensa primeiro em alimentar-se e aos seus filhos e faz senão bem. Tivera eu fome também faria o mesmo. O discurso lamechas que dá um valor metafisico à arte perante quem tem fome é geralmente inspirado pela musa pedinchona e egotista.
 
Não, talvez devesse falar das elites oficiais. Na época (falo só dessa época?) Camões morreu ignorado da imensa maioria da elite portuguesa. Os bons dos lentes de Coimbra andavam preocupados com as suas publicações, que de públicas o esquecimento fez secretas, com as suas grandes elucubrações, tão grandes que se lhe perdeu o rasto. Em vez de teses faziam um imenso rol de lavandaria. É natural que a lavadeira seja esquecida depois de entregue a roupa. A corte andava com outras preocupações, políticas estas. Não interessa muito saber as razões. Mas tiveram dado valor a Camões assim poderiam tê-lo acolhido, festejado, celebrado, admirado. Não foi o que aconteceu. Em suma, Camões não tinha importância para quem hoje em dia não a tem nenhuma.
 
Se D. Sebastião foi ingrato e avaro na sua tença? Dizem que não. Acredito. O conforto que teria merecido não o recebeu. Seria um esbanjador? Talvez. Sabemos como Wagner era insaciável, embora duvide que Camões tivesse fome de luxo no mesmo grau. Talvez fosse apenas inepto com a gestão da sua vida.
 
Os maiores elogios que vejo em relação a Camões vêm de bocas estrangeiras. Já o salientei. Os elogios portugueses são apequenados, circunstanciais, enfáticos, no fundo auto-elogios, porque pretendem fazer verter sobre toda a nação portuguesa a glória que é só dele.
 
Dizem que devemos ter orgulho de Camões. Não o diria. Diria antes que deveríamos ter vergonha. Não dele, mas do que lhe fizemos, e do que fazemos todos os dias. Esquecemo-nos que é graças a ele que pertencemos a uma das quatro línguas que se podem orgulhar de ter epopeias em sentido próprio. O grego com a Ilíada e a Odisseia, o latim com a Eneida, o sânscrito, com os Mahabharata. E a única língua viva que se pode orgulhar de ser uma língua épica, plenamente épica. É uma dívida que não se pode nunca pagar. E uma lírica que faz empalidecer muita da imensa lírica feita por outros povos.
 
Camões não envelhece. Por isso não gosto de dizer que Camões é um grande poeta português. É um grande, um imenso poeta: ponto final. Redimirmo-nos em relação a ele não é reparar o irreparável – nada mais podemos fazer por ele, embora muito possamos fazer pela sua memória – mas prevenir o dano futuro.
 
Estaremos atentos para o talento? Para o reconhecer? Para o respeitar? Para o recompensar? Para nos sentirmos privilegiados por lhe sermos contemporâneos? Se respondermos positivamente a estas questões não reparámos Camões, mas ao menos evitamos mais um dano em relação à grandeza que surja. Não limpamos cadastro, mas ao menos evitamos a reincidência. Mas, para ser franco, não vejo nada que me mostre que os portugueses seguem nesse caminho. País de lentes, peritos, e comités de sábios, tornam as honras académicas todas elas fúteis porque banhando sempre figuras menores. Camões não foi por elas tocado, também não foram elas pelo poeta benzidas.
 
A conclusão talvez seja melancólica ou desalentada. Que importa? Sobra apenas uma questão. Estaremos preparados para reconhecer, verdadeiramente reconhecer o génio? Se a resposta for negativa isso apenas diz sobre como a pobreza nos domina ainda e sempre. E até os ossos de Camões são superiores ao nosso quotidiano. Entre uma literatura nada-morta, espasmódica e esguichante e Camões estou mais próximo de Petrarca que falava com os seus mortinhos e a quem eles falavam. Mais vivo Camões mil vezes morto que vivos os apenas adiados na morte.
 
 
Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Abertura ou ambiguidade?


António Guterres convidou o Grão Mestre da Maçonaria e o Padre Victor Melícias para apresentarem amanhã a sua biografia. Como bom crente, faz o pleno: não tem aversão aos homens do avental e mantém-se católico. Politicamente, a escolha também apresenta uma aritmética adequada a um cristão socialista. Mas não se trata aqui de abraçar a humanidade sem exclusões sectoriais. Que católico quer um Presidente que escolhe o líder de uma sociedade secreta hostil para o apresentar? O que é que isso quer dizer? E que maçon confia num discípulo de Cristo que, na hora H, pode invocar objecção de uma consciência que lhe é adversa? Os poderes do Presidente da República no nosso sistema constitucional não comportam mais ambiguidades.

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domingo, 10 de novembro de 2013

Homenagem a Manuel Braga da Cruz

 
 
 
Quando Adriano Moreira disse, com naturalidade, que «teve a honra e a vantagem» de ser «admirador, amigo e discípulo» de Manuel Braga da Cruz - tal como fora do seu Pai - sintetizou bem o que foi a homenagem ao anterior Reitor da Católica, nesta semana, por iniciativa da Reitora Mª da Glória Garcia.
Foi possível, durante mais de duas horas, ouvir uma série de testemunhos a um tempo elogiosos e não excessivos, intimistas e não ridículos, com densidade intelectual e nada maçadores. A fórmula era arriscada e a homenagem quase politicamente incorrecta: como elogiar em Portugal alguém ainda novo, vivo, católico, patriota, intelectual, cívico, aberto e conservador? Alguém que, como disse Marcelo Rebelo de Sousa, «pensa a sua fé em uníssono com o sentir da sua Pátria». Alguém que «no reino do acessório e do efémero dos nossos dias» conjuga «a isenção, a inteligência e a sensatez». Oradores e homenageado resolveram esta equação, sem complexos nem favores, numa cerimónia que nos mostra que Portugal está finalmente preparado para reconhecer méritos sem fronteiras.    

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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Habemus estátua!

 
O projecto da estátua do Santo Condestável em Lisboa venceu ontem o Orçamento Participativo da CML - 2013 na categoria de 150 mil euros. Será aberto um concurso limitado para a concepção e realização da estátua. Pretende-se uma obra figurativa que represente D. Nuno Álvares Pereira como combatente e homem de fé, tal como Bento XVI o distinguiu na canonização e tal como é reconhecido pelo Povo de Lisboa.
Entretanto, nos últimos dois anos a Comissão São Nuno de Santa Maria fez um levantamento sobre uma dúzia de lugares onde erguer a estátua e, com a Vereadora da Cultura, foi escolhido o jardim do topo da Av. da Torre de Belém, no Restelo. Ficará, assim, entre a capela de S. Jerónimo e a Torre de Belém, entre a oração e a expansão, cumprindo a dupla condição da sua vida de Santo e de Herói. Era tempo.

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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O Papa subtropical

A iniciativa papal de ouvir o que pensa o Povo de Deus sobre temas fracturantes surge como mais um sinal de abertura. Abertura para um beco. Não que faça mal à Santa Sé apurar o que os seus párocos já sabem, entre o adro e o confessionário. Também durante os trabalhos do Concílio Vaticano II se ouviram casais de leigos e, no entanto, três anos depois (1968), o resultado foi a encíclica de Paulo VI que criaria o imbróglio do preservativo.


Ouvir para conhecer? Ouvir para que o ouvido se sinta ouvido? Ou ouvir para mudar? As boas intenções do Papa criarão o inferno do descontentamento entre os que acalentam a esperança de fazer doutrina à imagem do tempo que corre. Não vão conformar-se com a manutenção de princípios imunes ao tempo e ao modo. Nada há de democrático na Doutrina. Pode e deve ser discutida e aprofundada. Mas esta consulta surge nos jornais como um Referendo. O que fará a Igreja com o resultado?

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