sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Dogma e liberdade I


Assim como sou um fervoroso admirador de Jung, não acho particularmente comestível a maioria dos seus seguidores. O próprio Jung dizia que não era junguiano. E tirando talvez o caso de Marie-Louise von Franz, que teve obra original e simultaneamente profundamente entendida no pensamento de Jung, os esbirros de Jung parecem-me muitas vezes tão confrangedoramente destituídos de bom senso, quando o seu patrono era dele dotado.

 

Uma das lengalengas da nossa época é a de que o dogma limita a liberdade. Renasceu este meu agastamento ao ler um livro de um tal Pollikoff sobre a obra de Rilke. Ora é significativo que este tal de Polikoff, rapaz bem comportado formado em academias longínquas, em vez de citar Jung, cita um seguidor de segundo nível chamado Hillman, que parece ser um rapaz inteligente, mas sem mais, talvez algures na sua cidade glória local, muito merecida, deduzo, mas constrangedoramente trivial e bem comportado nas suas ideias.

 

Explico em que sentido.

 

Como é usual, a obra dos poetas, pensadores, artísticas, científicas da Idade Contemporânea ou não é confrontada com o cristianismo, ou, quando tal é inevitável, desesperadamente inevitável, compara-se com o cristianismo.

 

Quando é tal inevitável? Quando o próprio autor declara, expressa, proclama a sua ligação ao cristianismo. Nos outros casos, omite-se pura e simplesmente a problemática cristã das suas obras. O que é pena. Muito haveria a dizer sobre a marca cristã em Poincaré e Maxwell, por exemplo.

 

Critério curioso. Seria a mesma coisa que só falar de organitos caso a célula nos falasse deles, ou só referir o electromagnetismo se o próprio campo electromagnético se declarasse com essa qualidade. A falta de profundidade, de perspicácia, dos críticos literários e historiadores na nossa época é em geral muito confrangedora. Vivem apenas do valor facial quando este lhes interessa, e procuram desesperadamente o reverso quando o facial os assusta.

 

Mas quando se compara com o cristianismo, com que cristianismo se confronta o autor? É evidente: com o cristianismo em versão popular, de preferência caricaturado e em veste burguesa.

 

É o que faz o bom do Polikoff. Impressionado com a repressão católica dos costumes do século XIX, constrói a obra e o pensamento de Rilke com base numa ideia de afastamento dos dogmas católicos.

 

Qual é o problema? É que não se trata de dogmática católica, mas de um catolicismo austríaco do século XIX, um dos séculos mais pobres para a criação católica, malgrado ser uma época de fecundação de movimentos que vieram mais tarde a produzir os seus frutos, como o do estudo da patrística. Mais pobres, mas atenção: Bruckner, Chateaubriand e Duhem não são medíocres. O mundo circundante, antes de ser dominado por hábitos católicos, era-o por costumes burgueses, herdeiros da revolução industrial e da revolução francesa.

 

A claustrofobia que o burguês tem em relação a essa época é antes do mais a claustrofobia que o burguês tem em relação ao mundo que ele próprio criou. O burguês, mal instalou o mundo, o seu, vive o horror da sua construção. A crítica dos artistas, dos revolucionários e dos pensadores, a maioria de origem burguesa, diz tudo sobre a honestidade e a inépcia desta classe. Todos os movimentos de revolta até à nossa época são, não uma revolta conta o cristianismo enquanto tal, e a sociedade aristocrática que o deixou florescer, mas revoltas edipianas contra as suas origens burguesas.

 

O pós-modernismo no fundo ataca bem mais o positivismo que é seu pai que o cristianismo que insulta. As correntes de pintura desde a segunda metade do século XIX não é tanto contra Da Vinci que se assanham, mas contra a pintura burguesa, industrial do século XIX. Heidegger ataca a teoria dos valores, que é uma pequena reclamação, mas no fundo submissão, ao positivismo.

 

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