sexta-feira, 3 de maio de 2013

Racionais e científicos


Tendo eu dedicado algum tempo e paciência ao estudo de espécies de insuficientes, gostava de apresentar mais um que vegeta na praça pública. Descreve-se este pela frase “eu sou um homem racional, com espírito científico”. E nada mais diz a criatura. Não fundamenta nem desenvolve.

Façamos uma pausa e vejamos que enormidade está a ser dita. É que o pobre coitado julga que está a dizer coisa coerente, mas esquece-se de que a razão e a ciência não vivem sem duros conflitos entre si. A banalidade faz da fé a grande adversária da razão, ou pelo menos com quem mais se confronta. Mas a ciência não tem menos problemas com a razão.

Em primeiro lugar abandona qualquer hipótese de uma razão total. O sentimento de quem tem razão, as vivências que se instalam em simbiose com a razão e a alimentam são expurgados do seu horizonte. A razão da ciência pressupõe uma despedida e uma pobreza. Em segundo lugar é uma razão não imperante, antimonárquica. Essa mesma razão tem de ser sindicada pela experiência, pelos sentidos, mesmo que mediatamente. É uma razão dominada, obediente. É finalmente uma razão que abdica de tratar pelo menos directamente (ou seja, nunca) das coisas últimas, das últimas causas e dos últimos fins. É uma razão de renúncia, em boa verdade, casta.

A razão da ciência é assim uma razão que nasce de uma despedida, de uma dominação e de uma renúncia. Pobreza, obediência e castidade são os seus motes.

Os grandes filósofos medievais (cada vez mais percebo que este adjectivo diz muito pouco) conviviam alegremente com o infinito, traziam-se eles todos com a razão, e deixavam-na imperar. Nada desta glória é reservada à ciência moderna. A partir do momento que se abandona este primado da razão o espírito científico vive obcecado com a certeza e mais tarde obcecado com a sua destruição, como se de um bezerro de ouro fosse. Mas bezerro criado pelos primórdios da própria ciência e não por um mítico obscurantismo medieval.

Se bem virmos o que mais se aproxima do movimento científico não é o sacerdote de Ísis castrado, nunca o poderia dizer tendo em conta a sua fecundidade, mas o movimento monástico. Tanto os votos que a razão tem de fazer para se tornar científica são semelhantes, assim são semelhantes as manifestações de um e outro movimento. Ambos formam um modo de vida, as suas congregações. E entre os orgulhos de cada mosteiro, outras vezes orgulhos nacionais, a pertença à república das ciências traz ar de beneditina postura.

Como se vê, a razão da ciência não é uma soberana e folgazona que se atrevesse a cavalgar no seu império. A riqueza da sua vida faz-se da clausura, a extensão da sua vida mede-se na medida inversa dos seus constrangimentos. Como se vê, quem afirma ser racional e simultaneamente ter espírito científico sem mais fundamentar ou delimitar arroga-se ser rei e monge de um só golpe. Sem ter consciência da contradição.

Mas continuemos. Vejamos em que mais esta frase esquece os dados fundamentais do que deveria dizer.

De que razão se fala, de que ciência? Cada uma delas tem assentos bem diversos, modelos bem díspares entre si. O modelo mecânico imperou sobretudo nas ciências físicas, por vezes na química. O modelo morfológico nas ciências humanas e nas da vida. Um e outro atravessam a matemática e a química. Trata-se de modos de viver a razão bem diversos, sendo ela a mesma não obstante. É evidente que existem paralelos entre o filólogo, o linguista, o mineralogista, o biólogo e mesmo o especialista da álgebra abstracta, sobretudo na escola de Bourbaki e seus descendentes. E que existem semelhantes entre o especialista em análise, o físico, o teórico da informação. E mesmo assim apenas falo de tendências. Nenhuma ciência foi imune à morfologia ou à mecânica. Freud é mecânico e Jung morfologista, Spengler é mais mecânico e Ortega, Toynbee e Kantarowicz mais morfologistas. De que razão se arroga pois este espécime que se afirma racional e científico? De que espírito científico? Afirma que a sua razão obedece a um paradigma mecânico ou morfológico? Ou ambos? E como os concilia?

O espécime em causa, que pulula no espaço público, não vive apenas nesta podridão. É que esquece que o movimento científico tem origens algo obscuras, nasceu na obscuridade, mas nasce igualmente todos os dias da obscuridade. Vejamos alguns exemplos. A atracção e repulsão de Newton são conceito bebido na teosofia, na cabalística, na tradição hermética. Todas as crianças cantarolam hoje em dia a canção de Einstein, mas não foram “idealistas” alemães como Mach, ou um homem não muito enquadrável como Maxwell a dar foro de nobreza científica ao conceito de energia, esse conceito tão ressumando espiritismo, e ocultismos, seria palavra bem ridícula hoje em dia face à comunidade dos cientistas. Quando o padre Lemaître descobre que um dos corolários da teoria da relatividade generalizada seria o Big Bang é acusado de criacionismo. Quando se fala em múltiplos universos tem-se conversa que assusta o nosso espécime. Não deve ser a essa razão que se depara com o infinito que o move.

Vejamos mais um pouco o bicho. A dissecação prova ser divertida.

De novo em termos simplistas a ciência fez-se de dois movimentos contraditórios. Um primeiro assente no platonismo (ou melhor, num neopitagorismo), que dá origem à física do século XVII. O segundo nasce com o aristotelismo e o tomismo, e que faz nascer as ciências da vida, a mineralogia e a química. Mas igualmente a filologia, e as ciências humanas em geral. Seguem-se obviamente várias miscigenações entre estes movimentos e uma ideologia sobre a ciência que quer como paradigma a física (neopitagórica) mas em boa verdade tem prática aristotélica, passando pelo filão helenístico.

E isto sem esquecer que estes dois grandes movimentos se entrecruzam com os outros e entre si. O movimento é monástico, no seu paradigma, mecânico ou morfológico no seu símbolo, platónico ou aristotélico, na sua origem antiga. De fundo cristão e pagão indo-europeu muitas correntes contribuem para a conformação de cada ciência e de cada momento específico desta, e de cada escola que nela se forma.

De quem se reivindica este espécime que diz ser científico e racional? Que cruzamento faz entre este movimento, estes símbolos e estas origens? Qual o seu paradigma, qual a sua metáfora? Disto nada nos sabe dizer o espécime. O espécime é só isso. Um exemplar de uma espécie. Não uma pessoa, mas uma mera ocorrência. Não bebe de um paradigma, mas apenas se subsume a uma categoria lógica. Não acede à metáfora quem não tem substância. Não vale a pena inquiri-lo. Ele não sabe dar resposta porque não sabe o que é uma pergunta. Apenas afirma, porque essa é a sua única forma de afirmação.

De que razão fala ele então? Porque se arroga espírito científico? Convenhamos: a sua razão é caseira, é a razão de açafata ou mais correctamente de criada grave. A sua razão está para a que é magna como a economia doméstica está para a ciência económica. Tem o seu lugar, mas apenas na copa. O seu lugar natural não é a antecâmara do infinito, mas tão simplesmente a antecâmara. E porque considera ele que tem espírito científico? Porque usa telemóvel e anda de avião. O espírito científico é algo que se usa e se legitima pelo uso. Cultor da usucapião, é apenas isso: detentor de terra não por a ter conquistado ou comprado a esforço, mas porque a ter usado desde tempo bastante para a ela se acomodar. Cultor do uso vê nele e apenas nele a legitimação. Que diga disparates não nos deve espantar, portanto. Assim apenas revela, não a sua opinião, mas a sua natureza.

Alexandre Brandão da Veiga

8 comentários:

João de Castro Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
miguel vaz serra....... disse...

Racionais ou não, científicos menos....
E existem os corajosos, geralmente postos de parte, e os cobardes....
Não só hoje mas mais que nunca senti VERGONHA de ser Português e nojo de Passos Coelho pela sua cobardia.
Como gosto de explicar as coisas passo a fazê-lo.
Vergonha porque tenho a mesma cidadania que um PM cobarde.
Cobarde porque as pessoas que batem nos mais fracos são-o.
Não faço ideia se Passos Coelho toma Valium 10 para dormir mas quem tem medo dos interesses financeiros, continua a pagar "rendas e subsídios" com o nosso dinheiro a empresas como a EDP,não toca nas PPP's nem na Banca e recorre aos reformados para arranjar dinheiro para tapar os buracos que décadas de loucura deixaram é um cobarde!!!
Isto é uma vergonha e tem que acabar.
Não posso deixar de dizer que hoje o CDS-PP caiu bastante na minha consideração!

João de Castro Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João de Castro Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João de Castro Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Cara Inez Dentinho,

Antes de mais queria pedir desculpa por entrar em contacto via blogger, mas não encontrei outro meio de contacto

Sou aluna de Comunicação e Jornalismo, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, a frequentar o 2ºano de licenciatura.

Neste semestre, na cadeira de Jornalismo de Investigação, temos por objectivo a concretização de um projecto final, sobre jornalismo de investigação, de 1992 a 1994.

Principiamo-nos numa meticulosa pesquisa, na Hemeroteca de Lisboa, de jornais portugueses dos anos referidos em epígrafe, como por exemplo: Expresso, Independente, Publico, etc., de modo a averiguarmos nomes de jornalistas dessa época

Entre muitos outros, o seu nome surgiu mais que uma vez, dentro do tipo de jornalismo que indagamos.

Posto isto, e sem mais delonga, venho por este meio lhe propor uma entrevista, para que nos possa elucidar, de um modo mais pessoal e directo, sobre o jornalismo de investigação que era feito de 1992 a 1994

Fico então á espera de resposta, o meu e-mail é: anarita456@hotmail.com

Sem outro assunto,

Com os melhores cumprimentos,

Rita Soares
nº21002928
ULHT - CJ 2ºano
Jornalismo de Investigação
Docente: Daniel Cruzeiro

João de Castro Nunes disse...


Ando à procura de Deus
sem conseguir encontrá-lo,
muito embora entre os ateus
eu me afirme seu vassalo!

JCN

João de Castro Nunes disse...

A geração de sessenta
está visto que não presta,
pois nem sequer aguenta
um simples tiro de bésta!

JCN