No uso corrente “minoria” parece ser usado num sentido quantitativo. Uma minoria é sempre algo que está em menor número. Será assim? É que, quando se referem as mulheres como uma minoria mostra-se que não é de número que se trata. Não se quer falar dos fracos, porque esse conceito lembraria demasiado uma linguagem cristã, e por isso se invoca o conceito de minoria.
Mas é realmente dos fracos que se fala? Uma minoria estatística pode deter o poder. E aí já não se fala em protecção das minorias. Maioria ou minoria estatística, a coisa não releva. Não é de números que se fala.
O conceito de minoria, tal como é usado, não se refere a uma realidade estatística, mas a um desequilíbrio de poder, aos fracos. A nossa época, pudibunda e com pretensões de legitimação “científica” usa um conceito que traz alusões à dimensão quantitativa para falar de problemas de valores. Falar dos fracos seria falar de pessoas concretas, e de uma situação sentimentalmente carregada. O conceito de “minoria” dá um estatuto aparentemente “objectivo”, “científico”, ao discurso. Afasta a memória cristã e sossega as consciências por parecer ser um conceito universal, neutro religiosamente.
Esta pudibunda limpeza da linguagem ocorre em França e é exportada para o resto do mundo. A caridade cristã, conceito bem mais complicado que o que é suportável pelos analfabetos (a “caritas” daria um tratado para ser analisada), é em primeiro lugar afastada pelo conceito de fraternidade. Mas, sendo a fraternidade ainda demasiado cristã, a linguagem tecnocrática, saint-simoniana, de meados do século XIX criou o conceito de solidariedade para depurar as almas.
As “minorias” surgem no mesmo movimento em que, se por um lado se desvaloriza a ciência europeia, ao mesmo tempo se aproveitam os escombros do seu prestígio para legitimar um discurso.
Parece que a minoria se identifica a fraqueza. Mas não é assim. Porque o espírito de solidariedade é selectivo. Fariseus cumpridores de rituais, obcecados com a pureza ritual, os defensores das minorias não pretendem proteger todo o tipo de fraqueza. Há fracos oficialmente atestados. Burocráticos carimbadores da vida humana, os defensores das minorias apenas aceitam como tais as que recebem um certificado de qualidade de acordo com critérios mais ou menos definidos.
É que os defensores das minorias praticam habilmente a exclusão (uma realidade que condenam, mas praticam). Senão vejamos.
A nobreza foi sempre uma minoria estatística, embora forte durante milénios. E no entanto hoje em dia é fraca. Representa uma cultura que formou a Europa, que conforma ainda hoje em dia o nosso gosto, o nosso modo de viver. Tem uma subcultura própria e em acréscimo está em vias de extinção. Minoria estatística, enfraquecida, em vias de extinção. Teria tudo para receber o carimbo dos defensores de minorias. E no entanto, não apenas é ignorada por eles, mas é mesmo objecto da sua chacota.
Da mesma maneira as pessoas profundamente inteligentes e criativas são uma minoria, hoje em dia afastadas dos círculos públicos, destituídas de real poder, sem organização própria, e francamente, cada vez mais clandestina. O público em geral cada vez conhece menos os criadores, os investigadores. Berthelot era uma glória em França, Pasteur um mito no século XIX. Os seus descendentes intelectuais são quando muito personagens mediáticas, por vezes objecto de simpatia, mas não de devoção e ainda menos de idolatria. E no entanto os defensores de minorias não pretendem proteger esta minoria estatística, enfraquecida, e cada vez mais objecto de exclusão.
As minorias cristãs em alguns países muçulmanos, nomeadamente na Turquia, no Sudão, na Palestina, não o preocupam. E no entanto são minorias estatísticas, fracas, oprimidas e expulsas.
Repare-se que não digo que têm de ser objecto de protecção especial a nobreza ou os criadores, ou mesmo os cristãos orientais. Não é isso que agora importa. De certa forma é um alívio saber que se não é protegido por este tipo de pessoas. O relevante é perceber que a retórica dos defensores das minorias apoia-se em bordões que não correspondem às suas reais ideias. Nem a minoria estatística, nem a fraqueza, nem o perigo de extinção, nem a exclusão como tais os preocupam. Não são esses os critérios como vimos.
Quais são então?
Para começar, uma aparência. Uma aparência de menoridade estatística, ou de fraqueza. Recolhem habilmente, entre os sentimentos generalizados, as imagens do que é minoria, ou pretendem formar essas imagens. O defensor de minorias trabalha com aparências.
Em segundo lugar, joga pelo seguro. Não se atreveria nunca a defender a aristocracia ou os criadores, porque tem medo do ridículo. Como em geral é recrutado de pequena burguesia vive de aparência é certo, mas também do medo do risco. Herdou dos seus antepassados o medo de perder uma posição de superioridade relativa muito frágil. O pequeno burguês é o que vive sempre em risco de se proletarizar. Não pretende proletarizar a pouca superioridade moral que atingiu pela defesa das minorias e por isso não arrisca muito.
Em terceiro lugar é pudibundo. O objecto de protecção tem de ser ritualmente puro nesse aspecto. Sendo de extracto familiar de pequenos burocratas está habitado ao cheiro da tinta de carimbo, ao processo cosido, ao guichet bem enquadrado. Verifica se o fraco não tem certas ideias perigosas (liberal, por exemplo), ou vem de certas instituições consabidamente “conspurcadas” (igrejas cristãs), ou se não tem um passado de glória europeia (nobreza). Um exemplo típico é o de Carl von Ossietsky. Primeira vítima do nazismo, tinha o desagradável estigma de ser liberal e aristocrata e por isso não se encontra celebrado pelos defensores de minorias.
Em quarto lugar, como é um cultor inconfessado da legitimidade científica, tenta abstrair de todo o sentimento. Minorias que se distingam pela sua bondade, pela sua entrega ao serviço dos outros são muito menos atraentes que minorias cujas culturas violem a ordem moral estabelecida. Nada melhor para uma minoria de circuncidar mulheres ou as lapidar, ou praticar o homicídio passional das mesmas. Os factos são veementemente condenados, mas as culturas são inversamente enaltecidas. De preferência, a minoria deve ser destituída de diferenciação sentimental. Mau leitor de Nietzsche, ou melhor das suas versões Vulgata, gosta de se sentir um experimentador científico de valores. Nos seus genes estão poucas viagens e por isso procura dourá-los com uma aparência de elasticidade que não possui.
Em quinto lugar é um perseguidor da diversidade. A diversidade é incontrolável. Pressupõe um paradigma comum, mas uma ramificação dos seus desenvolvimentos que pode gerar resultados contraditórios. Ora o defensor das minorias detesta paradigmas comuns, porque nunca foi capaz de absorver nenhum em profundidade. E morre de medo da imprevisibilidade. Pequeno burguês de alma, prefere a calma burocrática do seu escritório em que carimba como minoria o que o conforta ser tal.
Em suma, o defensor das minorias nessa qualidade é um reaccionário. Quer impor aos outros uma ordem social multicultural... porque ele assim o decidiu. Quer uma ordem previsível, colorida, mas previsível como as cores de um arco-íris. Detesta as infinitas diferenças entre os seres humanos e por isso quer tipificá-las. É um cultor de heróis, precisa de mitos, e por isso inventa-os nas minorias. Escritor de hagiografias, doura as Histórias das que qualifica como minorias.
Pequeno burguês de alma e origem prefere viver num mundo previsível. Como o mundo real não o é, inventa um à sua maneira burocrática, cheio de cores, mas todas elas ordenadinhas como dossiers numa repartição. Tenhamos dó dele. Reproduz padrões aprendidos em casa quando julga estar a inovar. E a sua casa tradicionalmente tem divisões curtas. E fica em bairros pouco frequentáveis.
Alexandre Brandão da Veiga