sexta-feira, 29 de junho de 2012

Consolo inesperado e consistente


Ele 87 anos. Ela 80. Ele partido nas pernas, agressivamente lúcido. Ela mexida mas esquecida. Juntos na vida, separados pelo mútuo inconformismo. Têm filhos atentos e ocupados. Sozinhos em casa. Vivem em Lisboa e fazem parte do grupo dos 40 mil que seremos todos um dia, se Deus quiser. No dia em que ela sai para um programa de dias com um filho, ele cai e parte um músculo. Fica imobilizado. 
Batem à porta. Rute e Inês apresentam-se. Jovens licenciadas, psicóloga e assistente social, foram contratadas pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para fazerem o levantamento da situação de todos os lisboetas com mais de 65 anos ao abrigo do Programa Inter-Gerações. Profissionais. Amáveis. Abertas aos desvios da conversa. Focadas no essencial. Não aceitam um chá. Dão ideias e exemplos de casa. Estão numa casa. E também têm Avós. Tomam notas, dão o número gratuito das soluções (808 203 333) que a Santa Casa pensou para estes casos, tão próximos.
Para quem assiste, este programa é um monumento de companhia, compaixão, segurança, esperança. Obrigada. 

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quarta-feira, 20 de junho de 2012

O mito do humanismo

Quando se discutiu a Constituição Europeia todos se lembraram que a Europa tinha uma herança humanista e que portanto seria essa a fonte da Europa. É evidente que o humanismo é um movimento europeu. Mas já não é verdadeiro que seja a fonte da Europa. O humanismo, tal como tem evoluído nos dois últimos milénios, resulta de confluências várias entre o cristianismo e o paganismo indo-europeu. Esse o pano de fundo em que temos laborado. Para que este pano de fundo seja sólido na sua demonstração, tenho de demonstrar que o humanismo não é fundamento da Europa, mas antes uma sua consequência.

Há desde logo que destrinçar dois sentidos de humanismo. O primeiro é sentimental, o segundo cultural. O facto de ninguém ter feito esta destrinça na discussão sobre os fundamentos da Europa demonstra, seja a incultura, seja a má fé de quem nela participou. Sob o ponto de vista sentimental, o humanismo está ligado à doçura de actos e palavras. Sob o ponto de vista cultural o humanismo associa-se sempre à valorização da cultura da inutilidade directa e, em consequência, do conhecimento teórico por si mesmo.

Humanismo, num e noutro sentido, encontramo-lo em todas as civilizações. O humanismo não é pois em abstracto um fundamento da Europa.

Fala-se em humanismo árabe do beduíno pagão, que ainda hoje deixou rastos, no sentido em que se estabelecem limites contra a violência pelas regras da hospitalidade, da demarcação de territórios, pela delimitação do direito de propriedade em relação a camelos, escravos, esposas e filhos. Estes tipos de humanismo, no sentido de limitação da violência, encontram-se em muitos graus diversos em todas as culturas. Encontramos limitações idênticas nos tupis, nos guaranis, nos chineses ou seja em que povo for. O primado exclusivo da violência é insuportável para qualquer povo. Uma vida colectiva sem limites de violência é insuportável. Por isso até entre os assírios, os hunos e os mongóis na sua fase conquistadora podemos encontrar este tipo de humanismo. Este tipo de humanismo é inevitável, e por isso pouco meritório em si mesmo.

Humanismo no sentido de valorização da cultura teórica igualmente o encontramos na China, na Pérsia, entre os egípcios, tudo dependendo das épocas. Este segundo tipo de humanismo pode ser rico ou simplesmente pudibundice de erudito. É típico de civilizações elaboradas, mas nem sempre criativas. Se o primeiro é destituído de mérito por si mesmo, o segundo pode ser apenas enfadonho e resultado de falta de imaginação.

Ou seja, se se diz que o humanismo é constitutivo da Europa, ou se mente, porque se fala do humanismo em abstracto, ou então está-se a referir a um certo humanismo específico. E qual é ele? Ora bem: exactamente o que tem como fontes... o cristianismo e o paganismo indo-europeu.

Completada a primeira parte da demonstração, vejamos então que características especiais tem este humanismo europeu, que é europeu por o ser, e não por ser humanismo.

A primeira característica é a da adição do humanismo sentimental e cultural ser uma constante na Europa, sobretudo desde o advento do cristianismo. Ser homem das humanidades é igualmente ter o coração no lugar certo, abominar o que gera o sofrimento alheio. Esta ligação não é evidente, e apenas pode ser compreendida à luz do cristianismo, e antes, à luz do estoicismo. Na Europa não se fala do humanismo dos salteadores de estrada, como os europeus se comprazem a falar do humanismo do beduíno. Também sem a dimensão cultural não se fala em humanismo. Não há notícia de se ver a Aldeia de Rebedelas de Baixo referida como uma aldeia de humanistas. Inversamente, não se concebe facilmente humanismo intelectual sem sentimental. Um genocida em massa por mais culto que seja não é em geral chamado de humanista. Muitos oficiais em campos de concentração eram homens de grande cultura, e ninguém se lembra de os chamar de humanistas. Mas já o soldado kamikaze que se atira contra o porta-aviões recitando uma poesia é como tal chamado.

Este espécime particular de humanismo que liga a dimensão sentimental à cultural é tipicamente europeu. Existe noutras culturas, mas só na Europa a ligação é considerada necessária com tanta força.

A segunda característica é a da separação. O humanista separa-se de algum tempo histórico que condena. Ou o presente, por grosseiro, ou o passado recente dos góticos, ou um passado longínquo do Antigo Regime. Algum tempo histórico o irrita. Porque os costumes são violentos, porque a cultura é chã. E tende a associar uma coisa à outra. Mas sobretudo separação da multidão. O humanista sabe-se minoritário no meio de um mundo que é mais grosseiro, mais inculto, menos elaborado que ele. Quem leu as fontes originais sabe que nunca se viu tanta expressão de desprezo quanto nos escritos dos humanistas. Chusma, turba, maralha, canalha, plebe, escória são expressões que se encontram em Erasmo, mas igualmente nos estóicos, ou nos iluministas. O humanista despreza. Quando se diz que a Europa é feita de humanismo reconhece-se que é herança europeia o desprezo de épocas e das maiorias, a separação do tempo e do comum da sociedade. O que é verdade, mas doeria algo a ouvir para quem apenas no humanismo vê uma espécie de comédia delicodoce para crianças, enfeitada de sorrisos e abraços.

A terceira característica, que está obviamente associada à segunda, é a da ligação a um passado mais longínquo, real ou mítico, e a um grupo restrito de pessoas, vivas ou mortas. Separando-se de uns tempos e da maioria, o humanista liga-se a pequenos grupos e a certas épocas. Ou a Idade de Ouro dos poetas clássicos, a época de Saturno dos romanos, ou a Antiguidade Clássica para os da Renascença ou a República Romana para a Revolução Francesa, alguma época é dada como mítica. Uma época sempre longínqua por definição. O grupo restricto é o dos amigos, o dos correspondentes, ou tão simplesmente o dos autores mortos, seja Homero, ou Virgílio, na Antiguidade, seja Horácio ou Juvenal na Renascença. Assumir a Europa como tendo a sua fonte no humanismo é afirmar que a Europa se remete sempre para um tempo longínquo, por vezes mítico, e que só é europeu quem restringe, quem é selecto nos seus contactos. O que é em grande medida verdade, mas mais uma vez chocaria os bem-pensantes, e desta vez nem sempre é justo.

A quarta característica do humanista é a associação a um espaço específico. O humanismo é o que se recolhe no campo, fora da agitação ou pelo contrário é o homem urbano, mas não da cidade das massas, bem pelo contrário, da cidade das elites, de um grupo de escolhidos. O humanista pode ser cosmopolita, mas nunca é de todo o mundo. Ou pertence à república das letras, ou a círculos internacionais fechados. De uma forma ou de outra, seja qual for o espaço que escolher, é sempre um espaço de ócio. Assumir o humanismo como fonte de humanismo é assim reconhecer na Europa um espaço de ócio e sempre rarefeito, o que mais uma vez é apenas parcialmente verdadeiro, desta vez divertido, mas algo injusto como caracterização.

“Querem dizer tá-tá e não lhes chega a língua” dizia uma dama do Norte de Portugal. Perceberam que a democracia, os direitos do homem, a economia de mercado e o acquis communautaire não bastavam e procuram em desespero referências no fundo da sua insignificante bagagem cultural. Acabam por isso por dizer que a Europa é um espaço de desprezo e separação, de ligação ao longínquo e ao ócio e em que o cultivo do sentimento vai de par com o da ideia. Conclusões com as quais alegremente concordo, mas que são apenas uma pequena parcela da verdade. A Europa tem muito mais que isso é muito mais que apenas isso. Ou então pretendem dizer que não há diferença entre a Europa e a terra de tupis e beduínos. Que nenhum problema há se a Europa for apenas um espaço de inevitabilidades e enfadonho. Podem invocar que não sabiam que estavam a dizer isto. Mas sabiam realmente o que estavam a dizer?

Foram às suas lembranças vagas de um liceu mal digerido e de uma duas ou três aulas de História ouvidas com pouca atenção, e lembraram-se que os humanistas eram uns rapazes simpáticos. Reconheçamo-lo: o que pretendem dizer é que a Europa é um conjunto de rapazes simpáticos e que o resto do mundo nos pode amar por isso. Mas dos rapazes simpáticos não reza a História, nem espalham à sua volta o respeito e muito menos são objecto de paixão. É de uma Europa morna, feita à sua imagem, que realmente estão a falar. Fugindo a toda a confrontação, apenas para não os pôr em causa.

Relapsos, ineptos, ignaros, incompetentes, desonestos ou pura e simplesmente pretensiosos que querem fugir ao tema essencial, forçam-se a brincar a um jogo de espelhos em que tudo vale desde que se fuja à verdade. Eis que encontraram um fundamento transcendente para a Europa, esses tanto esfomeados como medrosos do transcendente. E se não captam essa transcendência a explicação é simples. Porque são incapazes de descer à terra e ver que as raízes da Europa estão mais e mais uma vez... no cristianismo e no paganismo indo-europeu.

Alexandre Brandão da Veiga

 

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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Espanha retardada

Espanha está sempre atrasada em relação a Portugal.
Na Reconquista cristã (séc. XIII / XV), na união política do País, (séc. XII / XV) nos Descobrimentos (séc. XIV / XV), na abolição da Pena de Morte (1867/1978) e da escravatura (1869/1888), no final da ditadura do século XX (1974/1976) e mesmo no pedido de adesão à Comunidade Europeia (1977/1980) que viria a ser aceite para o mesmo dia de adesão (01/01/86). Apenas na introdução da Inquisição (1536/1478), e na expulsão dos judeus (1496/1492) a Espanha se antecipou a Portugal.
O que atrasará este País tão maior e mais próximo da Europa? Este Reino que teve um Império onde o Sol nunca se punha?
Salvaguardadas as distâncias, lembrei-me desta «sequência de variável fixa» pelo atraso do pedido de resgate de Espanha à Europa. Parece haver uma resistência na meseta central (unidade de relevo mais antiga da Península Ibérica) no chão árido de Castela, pouco permeável ao que venha de fora a favor do reforço de orgulhos intrínsecos.
Será que nos seguirão no cumprimento do Memorando que estão prestes a assinar?

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terça-feira, 5 de junho de 2012

A Grécia no desenho europeu

Há três níveis de discurso quando se fala na actual situação da Grécia: o que evoca o nosso berço político e filosófico ao qual tudo devemos, tudo teremos de dar e que se sente resgatado com a ideia de, novamente através da Democracia, ter a esquerda radical de Atenas a condicionar o futuro do Velho Continente. Outro discurso navega nas águas da política e convoca o sonho de Jean Monet que reinventou no pós-guerra a máxima de Dumas, «Um por todos e todos por um». Finalmente, corre um terceiro discurso sobre o caso grego com uma abordagem tecnocrática, mais baseada no conhecimento dos gráficos do que do terreno, das famílias, das pessoas.
Os três discursos sobre o mesmo assunto não se cruzam e estão desajustados. 1) Há 25 séculos que a Grécia não se mantém inspiradora do Ocidente, quatro dos penúltimos esteve sob domínio Otomano. 2) A urgência do Pós-Guerra evoluiu para uma nova hegemonia germânica, desbotando o sonho da Comunidade Europeia. 3) A linguagem economicista não traça rumos de gente. Faz o «damage control» da situação, sem princípios filosóficos nem rumo político desafiante. Exit? Aproveitar a verdade dos gráficos e voltar à pureza da filosofia e da política. Só assim desenhamos e seguimos juntos.

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