quarta-feira, 20 de junho de 2012

O mito do humanismo

Quando se discutiu a Constituição Europeia todos se lembraram que a Europa tinha uma herança humanista e que portanto seria essa a fonte da Europa. É evidente que o humanismo é um movimento europeu. Mas já não é verdadeiro que seja a fonte da Europa. O humanismo, tal como tem evoluído nos dois últimos milénios, resulta de confluências várias entre o cristianismo e o paganismo indo-europeu. Esse o pano de fundo em que temos laborado. Para que este pano de fundo seja sólido na sua demonstração, tenho de demonstrar que o humanismo não é fundamento da Europa, mas antes uma sua consequência.

Há desde logo que destrinçar dois sentidos de humanismo. O primeiro é sentimental, o segundo cultural. O facto de ninguém ter feito esta destrinça na discussão sobre os fundamentos da Europa demonstra, seja a incultura, seja a má fé de quem nela participou. Sob o ponto de vista sentimental, o humanismo está ligado à doçura de actos e palavras. Sob o ponto de vista cultural o humanismo associa-se sempre à valorização da cultura da inutilidade directa e, em consequência, do conhecimento teórico por si mesmo.

Humanismo, num e noutro sentido, encontramo-lo em todas as civilizações. O humanismo não é pois em abstracto um fundamento da Europa.

Fala-se em humanismo árabe do beduíno pagão, que ainda hoje deixou rastos, no sentido em que se estabelecem limites contra a violência pelas regras da hospitalidade, da demarcação de territórios, pela delimitação do direito de propriedade em relação a camelos, escravos, esposas e filhos. Estes tipos de humanismo, no sentido de limitação da violência, encontram-se em muitos graus diversos em todas as culturas. Encontramos limitações idênticas nos tupis, nos guaranis, nos chineses ou seja em que povo for. O primado exclusivo da violência é insuportável para qualquer povo. Uma vida colectiva sem limites de violência é insuportável. Por isso até entre os assírios, os hunos e os mongóis na sua fase conquistadora podemos encontrar este tipo de humanismo. Este tipo de humanismo é inevitável, e por isso pouco meritório em si mesmo.

Humanismo no sentido de valorização da cultura teórica igualmente o encontramos na China, na Pérsia, entre os egípcios, tudo dependendo das épocas. Este segundo tipo de humanismo pode ser rico ou simplesmente pudibundice de erudito. É típico de civilizações elaboradas, mas nem sempre criativas. Se o primeiro é destituído de mérito por si mesmo, o segundo pode ser apenas enfadonho e resultado de falta de imaginação.

Ou seja, se se diz que o humanismo é constitutivo da Europa, ou se mente, porque se fala do humanismo em abstracto, ou então está-se a referir a um certo humanismo específico. E qual é ele? Ora bem: exactamente o que tem como fontes... o cristianismo e o paganismo indo-europeu.

Completada a primeira parte da demonstração, vejamos então que características especiais tem este humanismo europeu, que é europeu por o ser, e não por ser humanismo.

A primeira característica é a da adição do humanismo sentimental e cultural ser uma constante na Europa, sobretudo desde o advento do cristianismo. Ser homem das humanidades é igualmente ter o coração no lugar certo, abominar o que gera o sofrimento alheio. Esta ligação não é evidente, e apenas pode ser compreendida à luz do cristianismo, e antes, à luz do estoicismo. Na Europa não se fala do humanismo dos salteadores de estrada, como os europeus se comprazem a falar do humanismo do beduíno. Também sem a dimensão cultural não se fala em humanismo. Não há notícia de se ver a Aldeia de Rebedelas de Baixo referida como uma aldeia de humanistas. Inversamente, não se concebe facilmente humanismo intelectual sem sentimental. Um genocida em massa por mais culto que seja não é em geral chamado de humanista. Muitos oficiais em campos de concentração eram homens de grande cultura, e ninguém se lembra de os chamar de humanistas. Mas já o soldado kamikaze que se atira contra o porta-aviões recitando uma poesia é como tal chamado.

Este espécime particular de humanismo que liga a dimensão sentimental à cultural é tipicamente europeu. Existe noutras culturas, mas só na Europa a ligação é considerada necessária com tanta força.

A segunda característica é a da separação. O humanista separa-se de algum tempo histórico que condena. Ou o presente, por grosseiro, ou o passado recente dos góticos, ou um passado longínquo do Antigo Regime. Algum tempo histórico o irrita. Porque os costumes são violentos, porque a cultura é chã. E tende a associar uma coisa à outra. Mas sobretudo separação da multidão. O humanista sabe-se minoritário no meio de um mundo que é mais grosseiro, mais inculto, menos elaborado que ele. Quem leu as fontes originais sabe que nunca se viu tanta expressão de desprezo quanto nos escritos dos humanistas. Chusma, turba, maralha, canalha, plebe, escória são expressões que se encontram em Erasmo, mas igualmente nos estóicos, ou nos iluministas. O humanista despreza. Quando se diz que a Europa é feita de humanismo reconhece-se que é herança europeia o desprezo de épocas e das maiorias, a separação do tempo e do comum da sociedade. O que é verdade, mas doeria algo a ouvir para quem apenas no humanismo vê uma espécie de comédia delicodoce para crianças, enfeitada de sorrisos e abraços.

A terceira característica, que está obviamente associada à segunda, é a da ligação a um passado mais longínquo, real ou mítico, e a um grupo restrito de pessoas, vivas ou mortas. Separando-se de uns tempos e da maioria, o humanista liga-se a pequenos grupos e a certas épocas. Ou a Idade de Ouro dos poetas clássicos, a época de Saturno dos romanos, ou a Antiguidade Clássica para os da Renascença ou a República Romana para a Revolução Francesa, alguma época é dada como mítica. Uma época sempre longínqua por definição. O grupo restricto é o dos amigos, o dos correspondentes, ou tão simplesmente o dos autores mortos, seja Homero, ou Virgílio, na Antiguidade, seja Horácio ou Juvenal na Renascença. Assumir a Europa como tendo a sua fonte no humanismo é afirmar que a Europa se remete sempre para um tempo longínquo, por vezes mítico, e que só é europeu quem restringe, quem é selecto nos seus contactos. O que é em grande medida verdade, mas mais uma vez chocaria os bem-pensantes, e desta vez nem sempre é justo.

A quarta característica do humanista é a associação a um espaço específico. O humanismo é o que se recolhe no campo, fora da agitação ou pelo contrário é o homem urbano, mas não da cidade das massas, bem pelo contrário, da cidade das elites, de um grupo de escolhidos. O humanista pode ser cosmopolita, mas nunca é de todo o mundo. Ou pertence à república das letras, ou a círculos internacionais fechados. De uma forma ou de outra, seja qual for o espaço que escolher, é sempre um espaço de ócio. Assumir o humanismo como fonte de humanismo é assim reconhecer na Europa um espaço de ócio e sempre rarefeito, o que mais uma vez é apenas parcialmente verdadeiro, desta vez divertido, mas algo injusto como caracterização.

“Querem dizer tá-tá e não lhes chega a língua” dizia uma dama do Norte de Portugal. Perceberam que a democracia, os direitos do homem, a economia de mercado e o acquis communautaire não bastavam e procuram em desespero referências no fundo da sua insignificante bagagem cultural. Acabam por isso por dizer que a Europa é um espaço de desprezo e separação, de ligação ao longínquo e ao ócio e em que o cultivo do sentimento vai de par com o da ideia. Conclusões com as quais alegremente concordo, mas que são apenas uma pequena parcela da verdade. A Europa tem muito mais que isso é muito mais que apenas isso. Ou então pretendem dizer que não há diferença entre a Europa e a terra de tupis e beduínos. Que nenhum problema há se a Europa for apenas um espaço de inevitabilidades e enfadonho. Podem invocar que não sabiam que estavam a dizer isto. Mas sabiam realmente o que estavam a dizer?

Foram às suas lembranças vagas de um liceu mal digerido e de uma duas ou três aulas de História ouvidas com pouca atenção, e lembraram-se que os humanistas eram uns rapazes simpáticos. Reconheçamo-lo: o que pretendem dizer é que a Europa é um conjunto de rapazes simpáticos e que o resto do mundo nos pode amar por isso. Mas dos rapazes simpáticos não reza a História, nem espalham à sua volta o respeito e muito menos são objecto de paixão. É de uma Europa morna, feita à sua imagem, que realmente estão a falar. Fugindo a toda a confrontação, apenas para não os pôr em causa.

Relapsos, ineptos, ignaros, incompetentes, desonestos ou pura e simplesmente pretensiosos que querem fugir ao tema essencial, forçam-se a brincar a um jogo de espelhos em que tudo vale desde que se fuja à verdade. Eis que encontraram um fundamento transcendente para a Europa, esses tanto esfomeados como medrosos do transcendente. E se não captam essa transcendência a explicação é simples. Porque são incapazes de descer à terra e ver que as raízes da Europa estão mais e mais uma vez... no cristianismo e no paganismo indo-europeu.

Alexandre Brandão da Veiga

 

2 comentários:

miguel vaz serra....... disse...

Mitos....o da Democracia....
Geralmente sou muito irónico e sarcástico quando comento a forma como os políticos, todos, governantes ou oposição, pensam e nalguns casos conseguem enganar o povo. E não falo no povo estereotipo. Falo do povo Português. Dos que até estudaram e que nasceram em famílias que com mais sacríficos ou menos lhes deram uma vida boa. Dos que guiam grandes Audi e têm grandes casas. Dos que se pensam alguém e muito inteligentes. Todos esses são enganados.
Sim já sei. Não é só cá em Portugal, mas com a miséria política dos outros posso eu bem.
Quero é que se abram os olhos de uma vez no meu País.
Pondo a ironia de parte, fico com poucas ferramentas para comentar a desgraça social e económica que estamos a viver e o muito pior que se avizinha.
Creio mesmo que por maldade ou irresponsabilidade, por falta de inteligência e muita esperteza saloia, por incompetência ou talvez simplesmente porque não sabem fazer melhor, os políticos de carreira enveredaram por uma via tal que só uma nova forma de estar da sociedade pode reverter tamanha “abeculidade” mental.
Os indignados tentaram fazer a diferença, mas a esquerda parasita, a dos Jerónimos de Sousa e Franciscos Louçãs, acabaram logo com a essência.
Colam-se sempre às causas fáceis esquecendo os regimes que “adoram” na China, Angola, Coreia, Cuba, Venezuela e um etc de estados ainda em ditadura em que a lei é “ou fazes como nós queremos ou morres”.
Uma esquerda assassina com sangue nas mãos de biliões de seres mortos desde 1917. Nem os Nazis assassinaram tanta gente como os Comunistas por esse mundo fora o que já é dizer bastante.
Mas eles cá estão e parasitam na nossa podre Democracia. A que tem uma Constituição que não permite Partidos autoritários. Mesmo depois de Cunhal ter tentado impor pela força várias vezes a Ditadura que tanto amava e o mandava, a da URSS, eles lá ficaram. Tipo cancro que uma vez nascido não há quem o destrua.
Assim que indignadíssimos nós, não sabemos ainda bem como fazer para acabar com esta forma podre de fazer política.
Não é com novos partidos que lá vamos. Não é com novas ideologias. Não é com o voto. Essa forma está provada de que não funciona.
Não vou muito lá atrás na nossa história pois nem vale a pena. Todos sabemos que desde 1974 um bando de marginais tomou conta da política portuguesa e “fizeram-se á vida”. Reformas bestiais. Grandes negócios. Grandes vidas.
Basta falar de Sócrates e Passos Coelho.
Os dois mentiram tanto durante as campanhas que do que prometeram ao que fizeram há uma distância maior do que a da nossa Galáxia à última calculada matematicamente.
O mais engraçado é que Sócrates só caiu porque deixou de poder pedir mais dinheiro aos mercados, senão ainda o povo, esse de que falo, votaria nele uma e outra vez.
Nunca caiu por mentiroso, nem um ser digno de um Cartoon de terror.
E agora temos um novo homem.
Deste não duvido que seja honesto, leal, fiel, verdadeiro e trabalhador e que tem um curso estudado de verdade e com um Diploma com data de um dia de semana, tudo o que se provou o outro não ter nem ser, mas isso tudo na sua vida profissional e pessoal e até ao dia em que ganhou as eleições.
É aí que quero chegar.
O voto não nos serve.
A maioria dos portugueses votou no PSD porque acreditaram, uma vez mais, num homem.
Também deram mais uma vez a possibilidade de ir para o Governo a outro homem doutro partido, Paulo Portas.
Os dois foram uma desilusão tão grande que se Sócrates consegui tapar o sol com a peneira durante 2 anos, estes nem 5 meses.
Uma austeridade disparatada e aqui deixo um artigo tremendo do Nobel da Econimia Joseph Stiglitz sobe a mesma: http://www.ionline.pt/dinheiro/stiglitz-nenhuma-grande-economia-saiu-crise-austeridade ( diz Stiglitz que “Nenhuma grande economia saiu de crise com austeridade” ) foi tudo o que souberam até agora dar-nos e pedir-nos.
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miguel vaz serra....... disse...

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Estamos cada vez mais individados, cada vez mais pobres, há cada vez mais desempregados e jovens a abandonar o País que deles precisa para pagar as reformas, ou o que resta delas.
Sabemos que este Governo não manda nada e quem o faz é a Alemanha que os sustenta, bem, mas aí está o problema, é que basta de servidão.
Sou um homem de direita. Toda a vida o fui e votei no CDS desde os meus 18 anos, digo votei porque nunca mais o farei mas nunca dei o meu voto a Cavaco.
Sempre fiz guerra ao meu partido por apoiá-lo mesmo sabendo que o Líder do mesmo nunca suportou o PR.
É como falar mal duma mulher a vida toda e depois casar com ela.
Que também conheço. Há gente para tudo.
Comento o meu ideal político porque as pessoas têm a mania de confundir “verdade de factos” com ideologia política.
Temos que nos debruçar no que interessa: Portugal
Não me interessa se os Angolanos querem mais de isto ou daquilo para meterem cá dinheiro, se os Chineses querem manter Mexia a sugar-nos na EDP, se os malandros que assinaram os contractos das PPP’s vão para a cadeia, se as Scut foram a maior mentira jamais fabricada pois o Estado perde dinheiro com a porcaria de contractos que fez, se amanhã vamos ter água nas torneiras, se os Bancos necessitam mais e mais dinheiro para poderem pagar salários obscenos aos “gestores, administradores, directores e assessores e outros terminados em “ores””.
O que aqui nos interessa a todos os portugueses é como vai ficar Portugal.
Não as empresas em solo luso.
Nós interessamos! Portugueses de carne e osso que trabalhámos a vida inteira para ter uma reforma minimamente justa, os que ainda trabalhamos para pagar 76% do nosso salário aos estado ordinário, obsceno e ladrão, as que ainda parem filhos destemidas elas qual padeiras de Aljubarrota e os pais que os fazem, os que querem estudar na Universidade e o Estado ordinário, obsceno e ladrão tiras-lhes as merecidas bolsas, os que nos estão a deixar todos os dias em viagem só de ida ( 85 mil jovens em 2 anos ), os que vão pequeninos e cheios de fome de manhã para a escola pois os Pais não tem nada para lhes dar, os que estão em casa porque lhes arrancaram o trabalho, os desesperados que matam todos os dias e depois suicidam-se, os velhos que deixam metade dos comprimidos nas Farmácias porque o Estado ordinário, obsceno e ladrão lhes tirou uns míseros euros da miseráveis reformas e não lhes chega já nem para comer normalmente. Podia estar aqui todo o dia e não seria capaz de falar de todos.
Nós, estes, esses, aqueles portuguese é que nos interessa.
Não faço ideia qual é a ideia desta ideia, mas ir para o Peru e levar Empresários Portugueses para incentivá-los a investir lá ficou-me atravessado.
Precisamos é que invistam cá.
Ou estou a enlouquecer?
Que tal seria o Ministro dos Negócios Estrangeiros e o PM fazerem tudo para atrair investimento para Portugal em vez de fomentar a saída de capitais do nosso País?
É que investir significa gastar dinheiro, certo?
Tudo é tão ridículo, incompreensível e intolerável que já não se pode andar com falas mansas.
Sempre peguei o toro pelos cornos e quem me conhece sabe que não me caso com absolutamente ninguém pois tenho a magia de não me vender nem precisar de o fazer. Por isso falo. Faço sempre e muito quando tenho razão.
No tempo da ditadura Sócrates falei tanto que recebi ameaças e telefonemas anónimos. Resultado? Falei ainda mais.
Hoje e sempre falo destes que nos estão a arruinar a dignidade.
Parece impossível que pretendam que ninguém um dia salte e diga?!
“Que raio estão vocês a fazer pá? Enlouqueceram ou querem enlouquecer-nos?”
Estamos muito perto disso.
Da indignação ao limite.
Da humilhação ao cubo.
Da passividade à luta tremenda. Estamos simplesmente fartos!!!!!!