sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Descrença e ignorância

Aposta-se, professa-se, insiste-se na descrença. A nossa época seria uma época de descrença. E em que a descrença cresce. Vistas as estatísticas, a coisa não é assim tão linear. A grande maioria dos europeus declara-se cristã, apesar de todas as cruzadas ideológicas contra o cristianismo. Algo semelhante se passou com a visibilidade dos extremismos de esquerda que nunca levaram no entanto a que a maioria da população votasse em partidos desse calibre.


Uma coisa é o discurso, a forma como uma sociedade fala sobre ela mesma, uma outra é o que essa sociedade sente, quer e entende como justo e adequado para ela. Não nos devemos pois deixar enganar pelos discursos que a Europa faz sobre ela mesma. Nas alturas de crise, nomeadamente da segunda guerra mundial, mas também em crises de fome ou alojamento mais recentes por toda a Europa, vimos que as instituições religiosas cristãs tiveram e têm um papel pouco visível mas muito mais presente que o que o discurso oficial admite.


Por outro lado, temos de ter sempre cuidado com o discurso sobre a intimidade. As distorções e os jogos de espelhos são moeda comum nesta matéria. Por vontade, por incapacidade de expressão, por inércias ideológicas, o discurso pode estar muito distorcido em relação à realidade que representa. A verdade é que na Europa as pessoas têm vergonha de se proclamarem cristãs. Por um lado, porque isso significa expor uma religião que se pretende eminentemente íntima. Em segundo lugar, porque são logo perseguidas por lugares comuns que conformam a sua imagem. Um cristão é beato, tem uma vida sexual pouco rica (pecado dos pecados!), é bem comportadinho, sem capacidade de aventura ou de imaginação. É o que a plebe intelectualizada gosta de dar a entender, pelo menos.


Se observarmos com mais atenção, o que verificamos não é tanto um fenómeno de descrença, mas, associada à vergonha, uma profunda ignorância. O problema da nossa época não é a descrença, mas a ignorância. Não é por alguém ter estudado em profundidade a teologia da Santíssima Trindade ou os vícios do monotelismo que tendeu para uma visão antitrinitária da divindade ou recusou pura e simplesmente o cristianismo. Convenhamos: para o comum estes problemas são puro chinês. As pessoas não são descrentes, mas ignorantes.


Vejamos exemplos. Ponhamos o cidadão comum, refiro-me ao doutorado, obviamente, perante uma igreja, perante um quadro, um requiem, ou uma obra-prima da literatura europeia. Reconhece ele um kantismo mal digerido em certas passagens da Anna Karenina? Percebe ele o que significam as conchas nas catedrais? Sabe ele porventura a importância capital do pomo da discórdia? Por vezes usa estes conceitos, esses símbolos, apenas porque está neles embebido. Sem mais. É a sua paisagem natural. Como o selvagem conhece a floresta, o europeu contemporâneo passeia-se sobre conceitos e símbolos que nunca será capaz de dominar. Diz recusar a cultura, mas apenas sabe comer dos seus frutos. Quantas pessoas recusaram a possibilidade da demonstração racional da existência de Deus depois de entenderem profundamente a filosofia medieval? Como a maioria nem sabe o que dizia esta riquíssima filosofia apenas recusa esta possibilidade por preguiça ou incapacidade. Incapaz de ler latim, ou sequer de seguir em vernáculo uma demonstração. Seja qual for, cérebro congenitamente cansado, não pode dar-se ao luxo de admitir a sua pequenez e por isso torna inexistente o que o ultrapassa, apenas porque o ultrapassa.


Recusar a metafísica é já uma atitude metafísica. Dizer que não existe metafísica é algo de estranhamente confuso. Não é verdadeiro se se recusa existência de uma História da metafísica. Ela existiu, ela existe. Se recusa a possibilidade de pensar metafisicamente ou a sua utilidade apenas se pode escorar em raciocínios metafísicos ou na pobreza dos seus próprios.


Uma das manifestações do espírito eminentemente metafísico da nossa época é a noção de eternidade de alma que tem. É sabido que muitas das pessoas não acreditam na imortalidade da alma nas sociedades desenvolvidas. Só que a maioria das pessoas é incapaz de pensar em termos estritamente pessoais. Atira-nos à cara uma metafísica imperiosa. Não regem apenas a sua vida. Não pensam: a minha alma não é imortal, aliás nem ela existe. Pensam: a alma é mortal, ou a alma não existe. Podem mesmo respeitar profundamente as convicções dos outros, mas são incapazes, mais que alguns outros, de sair de um pensamento igualitário, substancialista. Nunca se colocam a seguinte hipótese: A minha alma não é imortal, a minha alma não existe, mas nada posso afirmar sobre a existência ou a imortalidade das outras. A boa notícia é que se pensarem assim poderão ter a boa surpresa de terem razão quanto à sua, e não se enganarem redondamente sobre as outras. Muitas sabedorias antigas eram bem mais avisadas, porque reconheciam que tanto a existência como a imortalidade da mesma se conquistam. A custo. E sem haver acesso gratuito e universal a todos da mesma. Os que negam a imortalidade e a existência da alma são assim incapazes de se passear em paisagens diversas do cristianismo. Estão por ele tanto mais marcados que o recusam, a ele em primeiro lugar. Confortados pelo amor universal de um Deus que confere imortalidade a toda a alma humana, sentem-se com o privilégio de poder recusar esse abraço universal. Se soubessem trabalhar fora do cristianismo, realmente fora dele, poderiam colocar a hipótese de serem apenas pretensiosos, porque estão recusar um privilégio que nunca lhes fora conferido. Recusam o que nunca lhes foi dado, e pode-se dar o caso de a divindade apenas se rir da sua presunção.


A prova que este é um dos testes que demonstra que o vulgar apenas sabe trabalhar com conceitos cristãos é o de associar a ideia de imortalidade da alma a Deus. Esta associação é natural para um cristão, mas absurda para um jinaísta ou para um budista.


Pôr em suspenso, entre parêntesis. Este o exercício típico da nossa época. Corte com a realidade que começa por ser método científico gloriosamente frutuoso, mas para quem persegue uma ideia. Corte que leva a resultados de uma imensa pobreza, embora inteligente, quando se trata da fenomenologia de Husserl. Mas mero facto de preguiça quando é realizado pelo vulgar. Suspender o juízo pode ser acto de economia de pensamento, de avareza ou mais comummente de pura pobreza. Eu nunca abdiquei de comprar os maiores bancos do mundo. Pura e simplesmente não os posso comprar.


Desçamos então ao espaço público (infelizmente, trata-se geralmente mesmo de descer) e vejamos quais os efeitos desta ignorância que se disfarça em descrença. Esta postura permite ao homem público nunca se declarar ignorante, mas apenas descrente. A descrença aparece como uma forma particularmente avisada de prudência, quando apenas o é de má fé. Não se acredita na Europa, nem em grandes projectos. O homem que usa a etiqueta da descrença para esconder a sua ignorância é o homem da vidinha, que é legítima no vulgar, mas confrangedora no homem público. É o homem das soluçõezinhas, das politiquinhas, das pequenas alianças.


A descrença pública não é um acto de coragem, mas antes de uma imensa cobardia. Incapaz de defender uma posição de grandeza vive de ridicularizar quem a tem. Poucas personagens podem ser mais ridículas que um De Gaulle sem exército, sem legitimação eleitoral, sem dinheiro, sem meios. Mas foi esse “ridículo” que convolou uma França derrotada numa França vitoriosa do pós-guerra. O homem público descrente sabe que a sua alma, e a sua memória não são imortais. Trabalha portanto exclusivamente para si. Como o seu espaço temporal é limitado, apenas sabe trabalhar no aperto e gosta de dar vidas apertadas, bem balizadas, aos outros.

É esse o homem que nos governa. Metafísico sem o saber, ignorante esgotado com o trabalho de dissimulação, escondendo-se em tocas sempre que quer ser íntimo e saindo à luz do dia com a sua cartola de descrenças. Julgando suspender o juízo, suspende apenas a vida, a sua e a dos outros. Sendo curto o seu espaço de respiração, obriga os outros a conter a sua. Pequeno, assustam-no as infinitas possibilidades do mundo. Abomina toda a possibilidade e toda a abertura. Tendo nascido no meio do ridículo apenas sabe reagir perante a profunda intimidade com um sorriso de escárnio. Bendito seja. Terminará como começou.



Alexandre Brandão da Veiga

2 comentários:

Francisco Domingues disse...

Artigo interessante, profundo. Das várias afirmações que se poderiam comentar, recupero, por me dizer muito e ser objecto de reflexão continuada no meu blog "Em nome da Ciência": "Os que negam a imortalidade e a existência da alma são assim incapazes de se passear em paisagens diversas do cristianismo". Eu, em nome da Ciência, nego a imortalidade, não a existência da alma. Muito sinteticamente, por que não há nenhuma prova de que a imortalidade exista: já algum morto veio cá dizer que permanece vivo do "lado de lá? Então, sem provas, cada um creia no que quiser ou no que lhe der mais jeito para ser feliz ou o menos infeliz possível enquanto a vida lhe perdura. Se a alma existe, é óbvio que a dicotomia clássica: o homem = corpo + alma não tem cabimento, pois todas as prerrogativas atribuídas ao que se chama alma não passam de simples operações cerebrais, sinapses conectando-se para produzirem ideias, conceitos, sentimentos, emoções. Damásio demontrou isso na perfeição: basta que uma pequena parte do cérebro seja afectada para que uma ou mais daquelas prerrogativas colapse. Talvez, hoje, devêssemos dizer: homem = corpo + cérebro!
Acesso directo ao meu blog:
http://ohomemperdeuosseusmitos.blogspot.com

José Gonçalves Cravinho disse...

De acôrdo com Francisco Domingues, pois foi o Homem que criou Deus à sua imagem e semelhança e a respectiva Religião segundo os seus interêsses.