O que é um estúpido?
De vez em quando sabe bem numa época aproximativa poder recorrer a trabalho de rigor e excelência. Por isso quando ouço algo muito estúpido nada mais repousante que ler matemática, poesia latina ou o bom velho dicionário etimológico do senhor Meillet. Procurando no verbete “stupidus”, de fácil tradução, verifico que tem parentesco com o hitita “tuputu”, “grande barulho”, o “tupto” grego, “bater” e o “tupati” sânscrito, “ele bate”; e, imagine-se, é palavra cognata com “stuprum”, “violação”.
Em suma, para os nossos antepassados, mais sábios e directos, e mais ligados aos dados fundamentais da realidade que nós, porque menos carregados de mediação, um estúpido é alguém que levou uma pancada. De quem? Nada se diz. A verdade é que uma cultura tão aristocrática como a indo-europeia era afinal mais optimista do que geralmente queremos reconhecer. Ninguém nasce estúpido. Existe uma explicação: levou uma pancada. A estupidez é por outro lado barulhenta, incomodativa e em boa verdade pode ser mesmo uma violação.
Quando falo no estúpido entenda-se que a minha intenção não é a de insultar ninguém. Deus, na Sua infinita sabedoria, já lhes tornou a realidade insultuosa, não que pretenda eu substituir-me a Ele. Pretendo apenas que o leitor reconheça o espécime e possa tomar as medidas adequadas para o evitar no caminho, ou, caso não possa evitar as suas emboscadas, se possa defender. Se assim se entender, trata-se de um manual de sobrevivência na selva do estúpido. Como reconhecê-lo, como evitá-lo, e como se defender dele.
Como reconhecer o animal em questão?
O estúpido descobriu um refúgio. Os Temas Inteligentes. Pode comprá-los no supermercado, estão já devidamente enlatados, e dão-lhe um estatuto imediato. Um estúpido reconhece-se por querer fazer algo de temas inteligentes que sejam de fácil acesso. Se alguém quiser falar das formas nominais no indo-europeu pode ser um especialista, um homem dotado de imensa erudição, ou simplesmente um pretensioso. Se alguém quiser discutir sobre os teoremas relativos a grafos ou reticulados estará na mesma situação. Um estúpido não se mete nesses temas. Esses não se encontram ainda nas grandes superfícies comerciais da atenção.
Não, é noutros temas que temos de reconhecer o estúpido. Observe-se o bicho. De que temas gosta ele de falar? Do ambiente, particularmente do buraco da camada de ozono. De buracos saberá, caso tenha experiência de introspecção, mas da molécula do ozono nada sabe. O ozono para ele é um motivo folclórico, como poderia falar nos lírios do campo. Assim faziam os seus antepassados. Assim como antes os seus avós diriam que fica bem a rosa ao peito, ele afirma com determinação que não fica bem um buraco na camada de ozono. Longe de mim fazer a apologia de tal buraco. Apenas saliento que o espécime em causa nada sabe sobre ele.
Outro tema inteligente é tão simplesmente, o dos equilíbrios económicos internacionais. Pouco humilde, o exemplar desta espécie pode nada saber de como calcular juros de obrigações e muito menos saberá avaliar uma opção. Mas o vasto tema da economia mundial está ao seu acesso. Ou defendendo o capitalismo ou atacando, aqui vem ele cheio de impulso de doutrinação definir o que é injusto e injusto e de como resolver o magno problema.
O tabaco é outro dos temas. A alimentação saudável. A Europa, geralmente para dizer que é velha, decadente, e irracional. Ou então para dizer que é democracia, direitos do homem e economia de mercado. Ou então fala de Turquia e diz que ninguém sabe quais são as fronteiras da Europa. Ou então disserta em ciência infusa sobre a guerra e paz, as suas causas e efeitos, bem como a terapêutica para as mesmas. Ou então a importância da vida sexual para a felicidade. Ou ainda a relatividade das civilizações e das religiões. O estúpido é aliás especialista em exotismo.
É evidente que falar nestes temas por si só não denuncia o estúpido. Quem fala disto não comete pecado. Mas quem só fala disto e a esta receita apenas junta discussões sobre o que se encontra na despensa, nos programas de televisão e questões do seu trabalho, aí se encontra o estúpido.
O estúpido reconhece-se pois pela paleta temática em que se considera autorizado para actuar. Bipolar, para ele o mundo divide-se em temas inteligentes e temas do quotidiano.
Mas o estúpido é bipolar noutro aspecto. Não é pelo torpor ou pela excitação que se reconhece. Uma pessoa inteligente pode padecer de qualquer destes estados. O que define o estúpido, o que o denuncia, é passar de um estado a outro com uma grande rapidez. Comece o leitor a falar de temas realmente preocupantes como a violação de regras de etiqueta específicas. O estúpido quedar-se-á no seu torpor. Mas fale-lhe das fronteiras da Europa ou do tabaco, que o estúpido se levanta imediatamente. Aí está uma boa técnica para o reconhecer. O tema inteligente excita-o, porque se sente finalmente legitimado na sua existência. E o que era um silêncio relativamente consolador para os seus próximos transforma-se com rapidez num discurso em torrente.
Anatole France dizia que tinha mais medo de um homem néscio que de um homem cruel, porque ao menos o homem cruel descansa algumas vezes. Bipolar, o estúpido caracteriza-se pela sua infinita coerência. Mesmo a pessoa mais inteligente tem dias de estupidez. O estúpido é a coerência incarnada, constante, perseverante na sua natureza. Diabólico, em suma.
O estúpido descobre-se sempre em alguém que recorrentemente diz que gosta de coisas práticas. A obsidiante enunciação de um dever é sempre confissão de uma carência. Se diz que temos de ser práticos é apenas por não o ser. Um homem inteligente é prático na actuação, não precisa de atirar o mote à praça pública. O estúpido vê em tudo fundamentalismos, porque tem horror à fundamentação. Escapa-se-lhe o que seja e para que sirva.
O estúpido é igualitário. O mundo para ele mede-se todo com a mesma medida, a da sua limitação. Fala de tudo, tem ideias sobre tudo, e manifesta a mais absoluta coerência na matéria: todas elas são estúpidas. A estupidez é violação. Barulho, pancada, violência. Precisamente o que caracteriza a discussão no espaço público actual, em que todos sabem o que é a Europa mesmo que não derivem, demonstrem, declinem ou declamem. O estúpido concentrou-se na discussão europeia exactamente porque quanto mais o tema o ultrapassa mais ele se sente à vontade para o abordar. O mundo escapa-se-lhe e quanto mais se escapa mais ele se sente no mundo. Como o tema complexo por excelência é a Europa assim o estúpido se sente nele à vontade. O seu à vontade a dissertar sobre a matéria apenas demonstra até que ponto a questão o transcende.
Como o evitar? Esta uma questão mais difícil não na resposta, mas no seu custo. Como o evitar? Ficar em casa e desligar o contacto com o mundo. Os romanos têm um provérbio que diz “la madre dei imbecili è sempre incinta”, a mãe dos imbecis está sempre grávida. Se o leitor quiser ter vida social não os pode evitar. Como a doença, os cataclismos naturais ou a morte, o estúpido é uma inevitabilidade da vida.
Como se defender dele? Dê-lhe um leitor uma pancada na cabeça. Apenas o reinstaura na sua natureza. Acto de piedade, entenda-o como uma dádiva. Faz o estúpido retornar a casa, à sua natureza primeira. Alguém que, mesmo que não mereça levar uma pancada – questão discutível – faz bem que a receba. Se não a ele, pelo menos a quem a dá. Criatura barulhenta, perturbadora do silêncio, violadora por natureza, e nascida para o mundo de uma pancada, precisa de ser lembrada do seu estado natural e do seu merecimento efectivo. Não lhe responda o leitor. Mantém a criatura na ilusão de que participa no mundo dos comuns mortais. Responder é socializá-la. Dê-lhe uma pancada e repita a dose, tanto quanto seja necessário. Por mais estranho que lhe pareça, as garantias do Estado de Direito protegem à saciedade o estúpido. Mas mesmo que o Estado não perdoe o leitor, parta confiante para a acção, sabendo que Deus, na sua infinita sabedoria, não se sentirá identificado com o estúpido.
Alexandre Brandão da Veiga
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