sexta-feira, 7 de outubro de 2011

É a ciência cultura?

Entrando em qualquer livraria e procurando livros de matemática ou física (mais raramente confesso, de química ou de ciências da vida) apenas os encontro sob a epígrafe de “livros técnicos”. Quando muito, livros de divulgação encontro-os numa secção de divulgação científica. Consoante a dimensão, qualidade ou especialização da livraria encontro literatura, História, arte etc. Cada um destes temas devidamente diferenciado.


Em programas de televisão, ciência apenas a encontro em programas de divulgação científica, ou quando muito numa entrevista – forçosamente em termos algo ligeiros – a um cientista famoso. A maioria dos programas ditos culturais trata de literatura, ciências humanas ou mesmo curiosidades ou viagens turísticas.


Este traço que marca o espaço público europeu sempre me intrigou. Repare-se que neste aspecto a Europa é bem melhor que o resto do mundo. Ao menos estes programas existem, ao menos têm uma visibilidade acrescida na Europa, ao contrário dos outros continentes. Mas como com o mal dos outros bem podemos nós, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre o que isto significa para o definir o espaço mental do homem público.


É que este espaço público me parece formado por uma imensa ilusão, um conjunto de equívocos, que formata a sua argumentação, que lhe atribui uma falsa legitimidade para discorrer, que assenta em premissas todas elas distorcidas. Vejamos quais.

A cultura é humanidades. A ciência não é cultura, é apenas uma técnica. Ou, na melhor das hipóteses, uma especialidade. Quando alguém se quer cultivar lê poesia, romances mais ou menos intelectuais, vê filmes, ouve música. Mas esta atitude tem dois vícios. Em primeiro lugar, resta saber que humanidades estão aqui em presença. Na maioria dos casos duvido que estes humanistas saibam duas regras do latim ou grego clássico, as regras de poética, ou análise musical. Na maioria dos casos, o percurso pelas ditas humanidades é apenas passageiro, em que lugares comuns se sucedem uns aos outros (“códigos”, “linguagem”, “discurso”, “estruturas”, “valorações”, “representações”, etc.). Lugares comuns esses que em acréscimo têm o demérito de serem velhos quando se julgam frescos.


Em segundo lugar, reverso desta medalha é o de que a ciência despreza as humanidades. É pelo menos o que dizem os cientistas menores. Sempre que vejo alguém com formação científica dizer que “letras são tretas” lembro-me dos grandes cientistas, como Maxwell, Heisenberg, Schroedinger, Berthelot, para citar apenas alguns, que tinham um profundo amor pela arte, pela literatura, pela filosofia, pela música, ou por todos elas de uma só vez. Quando vejo um mestre do estilo que era um Poincaré ou um Pascal percebo que alguém que não sabe escrever é em geral fraco cientista. Ao desprezo folclórico dos não cientistas corresponde um desprezo igualmente étnico dos (maus) cientistas.


O outro sofisma é o de que só as ciências exactas e naturais têm arcanos, tudo o resto é facilmente transmissível, e mera questão de opinião. Afinal a cultura é acessível e é apenas questão de predisposição ou interesse, não de capacidade ou trabalho. Uma das reacções a este fenómeno é a tendência que certas ciências humanas tiveram para o barroco durante décadas. As estruturas mergulham, emergem, ficam em banho-maria, são objecto de tortura, marinam... toda a espécie de cozinhado era legítimo, incluso o abuso das ciências ditas exactas, cujo vocabulário foi apropriado e em erro palmar. O caso Sokal demonstrou-o à saciedade, como a fraude e o abuso irrompeu nas ciências humanas. A outra tendência para criar arcano é a do arcaísmo, de que mais sofreu a História. Em que se vê uma tendência irritante para se falar em “mesteres” em vez de profissões, ou de “El-Rey” em vez do “rei”. A verdade é que a História é das mais difíceis ciências que possa existir. Tem um método muito difícil de ensinar e exige uma maturidade de percepção da vida humana simultaneamente proba e universal. Conciliação difícil. Mas é precisamente onde todos se sentem autorizados a pisar. Literalmente. Os arcanos das ciências humanas existem. Basta pensar na complexidade da morfologia histórica ou na imensa complexidade da análise histórica.


Em conjunto e em consequência, surge um outro sofisma. A cultura não reveste carácter técnico. Vive ao sabor do espontâneo e do sentimental. É evidente que isto nunca é confessado desta forma. Mas o pano de fundo é tão planamente este. Cada um tem a sua opinião e nada a fazer. A turba decidiu o que é Europa e nada a fazer. Nada leu das fontes, mas já sabe quais elas são. Das humanidades todos estão autorizados a falar, todos se sentem com opinião própria. Quais são as fronteiras da Europa, quais são as características da Europa. Antigamente este era desporto de aristocratas de província com presunções intelectuais. Hoje em dia todos se acham no direito de ser tão destituídos quanto o fidalgote de província pretérito. No que têm razão, mas é razão que não os eleva.


A ciência é meramente utilitária, mera prestadora de serviços. Por isso basta pôr dinheiro na investigação para se obterem resultados. Há SIDA? Arranja-se cura em data certa desde que se atire dinheiro para a investigação? Não se descobre cura? Apenas falta de investimento, logo, há falta de vontade política.


A cultura comunga da política por circular no mesmo espaço (televisivo, de venda de livros, de discussão). Esta ideia falsa é reforçada pelo facto de a maioria dos políticos terem formação humanística e mesmo quando a têm científica, não a revertem no seu discurso.

Qualquer cientista avisado chama a atenção para o facto de as classes políticas, dos jornalistas e das populações decidirem em tema científico sem conhecerem uma linha do que seja a ciência. Mas o problema não se reduz à ignorância do objecto, ao facto de a ciência ser objecto de decisão política. É que a ciência deixou de ser paradigma de método na decisão política. Se nunca o foi em exclusivo (e ainda bem) deixou de o inspirar (péssima conclusão).

O que é a ciência? É dialéctica controlada, é aventura sindicada, é extrapolação regulada.

Uma visão primitiva da Historia da ciência diz que os senhores cientistas foram buscar à natureza para depois meterem nos laboratórios. A verdade é que o contrário se passou também. Quando no início do século XIX Berzelius quer reduzir a mineralogia à química tenta demonstrar, na medida em que o poude, que com os minerais se passava o que ele observava no laboratório. A História da ciência, sobretudo a experimental, europeia, foi feita sempre desta dialéctica controlada.


O afastamento do paradigma científico por um paradigma mágico faz das nossas democracias um espaço que tem horror à dialéctica controlada. Não há dialéctica, mas discursos sobrepostos, não há sindicância, mas apenas incontinência. E quando um espaço público é constituído de uma mera sobreposição insistente a acumulação é a do detrito e em vez de tesouro temos lixo.


Mas a ciência é aventura. Só é cientista quem procura sustentadamente o desconhecido. Os outros podem ser quando muito pessoas de cultura científica (nada mau) ou meros burocratas da ciência. O abatimento do paradigma científico significa que ou o homem público se atira ao desconhecido de forma infundamentada ou, o que é mais comum, se agarra ao seu folclore, e às suas ideias feitas. O problema é que ambas as negações se verificam na nossa época. De tanto se agarrarem ao folclore a que estão habituados (basicamente, os quadros da guerra fria, em que a Europa é a Europa NATO, a Rússia é nossa inimiga, a Europa não é uma civilização, mas uma aliança) são os mesmos aldeões que nos afirmam o que lhes é apenas desconhecido.

É igualmente extrapolação regulada. Nenhum cientista analisou todos os fenómenos, nem sequer todos os da mesma espécie. É impossível. Não assistiu a todas as quedas de graves que no mundo se passaram nem a todas a criações de antipartículas. Tem por isso de extrapolar. Mas fá-lo com regras.


Um espaço onde a cultura científica é falha é um espaço sem dialéctica, sem aventura ou sem extrapolação. Onde tudo se reduz ao diktat, ao caseiro ou ao denotativo. Ou então onde elas existem sem controlo, sindicância ou regulação. Tudo se traduz a mero empilhamento de fonações, à temeridade atrevida ou à mera generalidade. É um espaço caótico e em boa verdade da pura intolerância.


Este espaço da intolerância que nega o seu nome é o da aldeia global, em que o adjectivo apenas está para significar o seu lado totalitário e tirânico e o substantivo é o imperante: uma aldeia, como tudo o que isso significa de isolamento, pequenez e mero folclore.


Alexandre Brandão da Veiga

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