segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sinais de servidão

Uma vez um funcionário muito bem colocado disse-me: “eu prefiro ser mandado pelos americanos que pelos franceses e alemães”. Curiosa concepção de liberdade a que ele se resume a escolher um senhor. Escusado será dizer que a criatura em causa tinha um posto tão alto quão baixa era a sua origem. Em bom rigor, o problema da origem não é de onde se vem mas o facto de ainda se lá estar. A graduação apenas estica, não eleva. Que sofrimento.

Dá-se o caso de os últimos anos terem servido de demonstração. Não é muito relevante para estes efeitos saber onde está o vencedor a cada momento, se a ideia europeia de política internacional (aliás muito criticável em muitos aspectos) se a americana (muito boa talvez... para os americanos).


Mais importante é saber o que se aprende com estas reacções. E aprenderam-se coisas. Em primeiro lugar que é nas situações de crise, em que se têm de fazer opção claras, que se percebem as principais fidelidades. Elas existem sempre, mas só têm mesmo de vir ao de cima em períodos de grande crise.


O que ficou expresso nesta crise foi que alguns políticos, alguns comentadores, alguns jornalistas fizeram uma opção clara. Estarão sempre com os Estados Unidos, aconteça o que acontecer. E por mais irracional que seja a sua política. Dizem-se democratas, mas apoiam políticas condenadas por mais de 80% dos povos em que estão integrados. Acima da sua pátria, acima da Europa, acima da democracia, está a fidelidade aos americanos. Primeira lição importante.

Segunda lição a retirar é que decorre da frase “os americanos são só nossos principais aliados”. E como se não bastara apresentam-se como alternativa eventuais enormes projectos de investimento americanos, como contrapeso aos europeus. Onde está o dinheiro americano a fundo perdido? Onde está a solidariedade americana económica e social? É que talvez não dêem porque não é essa a sua forma de fazer política. Financiam exércitos estrangeiros e sistemas políticos, mas muito pouco o desenvolvimento. E talvez não dêem porque não têm. Gastam o dinheiro todo em armas. E talvez não dêem porque não lhes interessa, quando são investidores particulares. Não é por amor aos povos que as empresas investem. Os americanos continuaram a investir mais em França e na Alemanha que em Portugal e em Espanha.

Mas “aliados”? Que se acharia de uma criança de três anos que falando do homem mais forte da Terra dissesse: ele e eu somos aliados? Achar-se-ia ternurento, próprio de um desenvolvimento intelectual incipiente, ou pura tontice. Será que os cargos públicos criam a impunidade intelectual?


Terceira lição a retirar, os erros próprios. Se a Europa não foi capaz de impor uma política própria deve ter culpas no cartório. Sofrendo mais com complexo de imunidade que a outras regiões do mundo, achámos que não tínhamos de investir na segurança e na investigação. Provavelmente devemos ser mais selectivos nos nossos benefícios sociais, dando a quem realmente precisa, para poder investir mais nestas duas áreas. Não tínhamos defesa própria credível e isso criou tentações de curto prazo junto de alguns novos países aderentes para seguirem os Estados Unidos.


No que me diz respeito, a identidade de um homem maduro não se define pelas sua alianças, mas pelos valores e objectivos que são os seus. Nunca definiria uma Europa de acordo com a sua aliança em relação aos Estados Unidos, porque se trata de uma realidade com apenas algumas décadas. A Europa tem milhares de anos, e na sua História esta aliança é meramente conjuntural.


Em primeiro lugar a Europa é a Europa. Frase só aparentemente redundante, porque a pressão americana nos leva a dizer que é Europa o que não é. Depois, em função do que é, e do que lhe interessa, escolhe os seus aliados.


O seu primeiro aliado natural é a Rússia, com todas a dificuldades que essa aliança e uma futura integração venha a ter. É um parceiro da Europa (e uma parte dela) no longo prazo. Partilha de uma História profundamente comum, deu contributos inestimáveis para a nossa civilização. Entre Tolstoï ou Strawinski ou Mendeleev e Hemingway ou Gershwin ou Michelson não tenho dúvidas sobre quem mais contribuiu com grandes obras para a nossa cultura. Entre a profundidade histórica de relações entre as pessoas no dia a dia não tenho igualmente dúvidas quem são os nossos principais aliados.


Temos as nossas antigas colónias americanas e africanas com as quais temos relações de paternidade emancipada (não de irmandade, esse é um disparate) com os quais partilhamos uma História comum e uma cultura comum.


Temos igualmente vizinhos, muito diferentes de nós mas em graus diversos. Os turcos e turcófonos, e os árabes e arabizados. Temos de viver uns com os outros em boas relações de vizinhança e somos nós e não os americanos quem tem de construir o padrão desse relacionamento. São mais distantes de nós pela cultura que povos bem mais distantes geograficamente. Mas é com esses vizinhos que temos de viver, e eles connosco.

Finalmente, e só finalmente, temos os Estados Unidos, a Índia e a China. Em graus diversos, com parentescos diversos (mais próximos com os americanos, de seguida com os indianos, nulos com os chineses) que se apresentam como potências e com as quais temos de lidar, optando pela cooperação, ou a confrontação.


É evidente que este quadro parece relativamente distorcido, ou mesmo muito, para quem tem uma visão histórica apenas de décadas. Que disparate, diz o nativo, a terra é plana. É verdade, no horizonte estreito. Mas ela é curva, num longo horizonte. E é por ser redonda que funciona como funciona. Para se compreender o seu comportamento a longo prazo tenho de perceber que ela é redonda. Se quero apenas ir buscar um copo é melhor ficcionar que ela é plana. Basta-me. Se quero pensar nos grandes destinos do planeta tenho de incorporar a sua curvatura.


Confesso que estas discussões entre os amigos da paz contra os amigos dos americanos me parecem conversas de míopes. Resultam apenas do hábito, são em conclusão mero folclore urbano, a que todos nos vergamos, por falta de espaço mental, por fracos pulmões, pequena capacidade de respiração.


Começámos com o suburbano que de forma arrojada decidiu alvitrar sobre política. O suburbano não está em lugar nenhum, não pertence nem à cidade nem ao campo. Traz consigo um passado de dominação mas já não sabe a quem se entregar. Deixemo-lo na sua paz.


Verificámos afinal onde ficam os defensores da aliança com os Estados Unidos. A sua fidelidade não está na Europa, nem sequer em relação ao seu país nem sequer em relação à democracia. Sobre tudo isto prevalece a fidelidade aos americanos. Só lhes fica bem, mas demonstra o que para eles é realmente mais importante, acima de tudo o resto. Acreditam que são nossos aliados e aceitam a sua dominação, mesmo que não levem nada em troca. Não se vendem por dinheiro embora tenham a esperança de recebê-lo. Mas mesmo que não o recebam rezam ao altar americano. A pureza dos seus sentimentos apenas lhes fica bem.


Apenas pecam moralmente por falta de visão. Julgam-se aliados de um gigante e sorriem como crianças perante ele. Se deixamos estas crianças fazerem birra, a culpa não é dos Estados Unidos, mas nossa, dos europeus. É evidente que há e haverá sempre crianças malcriadas, mas se elas proliferam, o erro é sempre de quem educa. A Europa entregou-se nas mãos dos Estados Unidos e por isso deixou mãos largas aos fedelhos discursivos.


Citando os americanos: “Arranjem uma vida”. E isto é válido tanto para os que defendem os americanos a todo o transe como para os que os atacam. Vivam em casa própria, instalem-se na própria morada, em vez de se definirem pelas amizades (ou inimizades) que supostamente têm.







Alexandre Brandão da Veiga

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei desta caracterização do tal funcionàrio, realmente a maior part não sai de onde vem, só estica, é uma característica muito portuguesa e é pena.

Anónimo disse...

Gostei da caracterização do tal funcionário, realmente a maior parte não sai de onde vem, só estica... ,- é uma característica muito portuguesa e é pena.