quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Caridade e solidariedade III

Qual é o mundo que transmite a palavra solidariedade? Um mundo que se pretende não sentimental, metafísico ou revolucionário. Mesmo que movimentos ditos alternativos usem a palavra, não é nem privilégio deles, nem se apresentam verdadeiramente como revolucionários. Os movimentos alternativos são em muitos aspectos profundamente conservadores e conformistas, o que deixo para outra demonstração.

Mas o mundo que está por detrás da palavra é bem outro, e explica mais o que se quis que dissesse que o que efectivamente diz. O mundo solidário, o mundo sólido, é o mundo da cola, em que a realidade só se une pela grude, pela ideia de bloco. Não há unidade sem colagem porque a unidade não se funde na relação livre, mas nas correntes que prendem uns aos outros.

O mundo que está por detrás da solidariedade é um mundo pequeno burguês, do almoço de Domingo obrigatório com os sogros, das festas em família recorrentes em que todos enfadam todos, frequentemente discutem entre si, se insultam... para se reunirem na festa de aniversário seguinte. O mundo da solidariedade é um mundo com medo das palavras, com o que “parece mal” ("caridade” faz corar, o sentimento é substituído pela sexualidade onde se introduziu sub-repticiamente sem ser nominado o sentimento, onde a piedade religiosa apenas assume a forma do tabu).

São duas marcas fortes da sua origem pequeno-burguesa: o “parecer mal” e a união como grude. O pequeno burguês nunca foi livre. A grande burguesia nobilita-se pela cultura, o proletariado pela revolução. O pequeno burguês apenas tem o caminho de uma imitação timorata, do medo de descair para de onde vem e donde se mantém perto. É um mundo de medos, em que a aparência é o essencial. Precisa de se diferenciar, exactamente porque a diferença não é notória.

A solidariedade traz por isso a sua marca. Delicia-se com a palavra quem tem medo da caridade, em que a união é livre e é dádiva, e profusão e abundância e não mera abastança. A caridade é oferecida como acto de liberdade e recebida por um acto da mesma natureza. A solidariedade é imposta. A caridade é obra de gente livre, que optou por se dar, é real abertura sem quebrar a solidez. A solidariedade é passividade de quem apenas consegue estar em conjunto com grude. A imagem da caridade é o anel, a da solidariedade o “napperon” de "crochet" em cima de televisão (ou hoje em dia o cesto de verga sobre a parede branca). Deslocado, necessário, timorato. O seu entusiasmo é falso, tanto quanto a festa de família a que se vai por obrigação.

Passeamos por séculos e diversas culturas para perceber o que seja a solidariedade. Mas se a mancha atravessa o tecido todo pode ser confundida com o tinto. Espero ter mostrado que se trata apenas de nódoa.




Alexandre Brandão da Veiga

3 comentários:

maria lisboa....... disse...

Temos saudades tuas,Dentinho."Ouvistes???"

Táxi Pluvioso disse...

Solidariedade não é sentimento humano, é expediente para angariar fundos. bfds a todos

Anónimo disse...

Quando fui educado, lembro-me bem como me ensinaram a lutar por aquilo que queria e a compreender que nada caía do céu e tudo levava tempo.


Os pais treinavam os filhos a saber esperar, a saber persistir, a aguardar diligentemente a compensação do seu esforço.



Hoje, são poucos os pais que educam segundo este modelo. O critério do ter imprime um ritmo frenético à vida.



Antes, havia tempo para o ritual do tempo, a vontade era formada na resistência.



Hoje, o tempo tem o ritual de cada momento, a vontade é formada no frenesim de cada satisfação.



Antes, o tempo era uma escola, hoje é um embaraço. Antes, a disciplina interior sabia a libertação, pela firmeza que conferia à nossa atitude, hoje, a disciplina interior sabe a escravidão, pelo custo que confere a realização imediata daquilo que queremos.



Nos nossos dias, os pais desmesuram-se em ajudas aos filhos, em apoios, em cursos, em oportunidades, como antes não sucedia.



Mas negligenciam, nesta mímica social estranha de correr para todo o lado, os mais simples valores da correcta formação humana.



Quantos pais hoje falam aos filhos em disciplina? Quantos pais hoje ensinam os filhos a saber esperar?



Resmungamos generalizadamente que há um desencontro entre o que todos querem e o que é possível a todos dar.


Resmungamos, mas não vamos ao fundo da questão.



Como podem os pais de hoje transmitir aos filhos os valores mais preciosos, se eles próprios os abandonaram?



Como podem os pais educar os filhos a saber esperar, se eles próprios abraçaram a lógica imediatista da vida moderna?



Como podem os pais transmitir disciplina aos filhos, se eles próprios perderam os critérios em que a disciplina se funda?



A disciplina, no entanto, é a ferramenta decisiva da vida, como o saber esperar é a atitude própria das grandes realizações.



Como diz M. Scott Park, com alguma disciplina, resolvemos alguns problemas da vida, com total disciplina resolvemos todos os problemas da vida.



Na vida afectiva, não há grandes amores, nem grandes amizades sem disciplina.


Na vida em geral, em todos os aspectos da vida, não há destinos significativos à espera de quem não tem disciplina.


A disciplina olha os problemas de frente e resolve-os.


A disciplina cuida da força de vontade, dispõe-se ao essencial, sabe esperar.


A disciplina aceita a renúncia, o sacrifício, a abdicação — palavras hoje interditas.


A solução dos problemas de Portugal passa por aquilo que cada um de nós souber fazer a este respeito