segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? IV

7. Ódio à inteligência

Os intelectuais oficiais odeiam a inteligência e o estudo. Bom é gostar de futebol e de salsa. Só com vergonha dizem que ouvem música clássica e nem têm vergonha de dizerem que não sabem latim.

A igreja católica teve a sorte de ser a única soberania que teve num século só homens inteligentes e cultos à sua frente. As nossas democracias não podem dizer o mesmo. O que diz muito sobre os nossos critérios de escolha como povos e a nossa falta de exigência.

E este é manifestamente um homem de inteligência. Se os intelectuais oficiais detestam a inteligência e o estudo em Ratzinger é porque no fundo sentem-se confrontados com o que é realmente inteligência e estudo ao serviço não do efeito, mas de uma substância (1).

8. O mito do trânsfuga do progressismo

O mito é o seguinte: Ratzinger era um revolucionário, mas com a idade começou a ficar conservador. No Concílio Vaticano II era um modernista, mas tornou-se com a idade um reaccionário. Pior, tornou-se no Grande Inquisidor. Finalmente Ratzinger adquire algum picante como figura.

O problema é que este mito é falso em geral e no caso específico.

É em geral falso: os mesmos fundamentos que levaram ao aggiornamento foram os que justificaram o conservadorismo. O aggiornamento vem de figuras como Lubac e Congar que tentaram separar o que seria a tradição rotineira, do que era a verdadeira tradição. Os Padres da Igreja, e nomeadamente os Padres Gregos, foram fundamentais para isso. Como tudo o que é verdadeiramente original, foi às origens. Tentou-se distinguir o que tinha sido alterado com Trento, com a tradição medieval, e ir às raízes mais antigas da igreja.

Mas é igualmente falso no caso específico. Já no Concilio Vaticano Ratzinger foi contra o abandono da liturgia e a anarquia litúrgica. Percebeu que sem liturgia o catolicismo se desfigura. O centro da vida cristã é a eucaristia e a eucaristia não é um concerto pop. A liturgia é simultaneamente um sinal e um instrumento de mediação. Sem linguagem pertinente não há comunicação.

9. O equívoco do Concílio Vaticano II

Em síntese, o Concílio Vaticano II quis fazer um aggiornamento, pôr a igreja a dialogar com a modernidade. Mas não quis dizer que a igreja seja filha da modernidade.

Ora, a modernidade não quis diálogo, quis submissão. Quis que a igreja dissesse que não há a Verdade, mas verdades, ou que afinal isso não tem importância. Quis que a igreja dissesse que Cristo é apenas um entre os deuses, e que a moral é o que um homem quiser. Resta descobrir quem é esse homem.

É evidente que o problema não vem de agora. Já com Paulo VI a modernidade se agastava quando ele falava do preservativo, com João Paulo II quando disse que há uma só Verdade (o culpado foi logo Ratzinger, é bom de se ver) porque isso mostrava falta de respeito por todas as outras religiões (2).

No fundo, nenhuma novidade existe. A modernidade tenta mais uma vez com este papa a submissão e não o consegue. Por isso anda exasperada com ele. Já é o terceiro papa com que o tenta debalde.

10. Ódio de si europeu

O papado tem o defeito de ser uma instituição europeia. Daí que padeça de todos os pecados, porque como é consabido a Europa é culpada de todos os erros e tragédias do mundo, segundo os aforismos dos transeuntes.

Este ódio de si apresenta-se sob um sintoma recorrente. O da assimetria de discursos e de valorações.

Este ódio de si gera assimetrias de discurso. Se a igreja perde perdão seja aos judeus, seja pelas vítimas de pedofilia, seja pelo colonialismo, quem ouve apenas pensa: “afinal eu tinha razão, a igreja é culpada”. Mas isso gera um discurso assimétrico. Ninguém pede perdão pela escravatura praticada pelos negros e muçulmanos, nem pelas ditaduras islâmicas, porque não há tribuno autorizado para o efeito nem estas culturas admitem o perdão obrigatório. Não se percebe que o pedido de perdão é medida de grandeza e não de culpa.

No espaço público a igreja é culpada e a Europa é culpada. É uma forma estranha e doentia de se dizer que no fundo nós europeus nos identificamos com a igreja: nós temos motivos para nos odiar, e por isso temos de odiar a igreja porque faz parte de nós. É uma forma de intimidade doentia, no fundo.

Por exemplo, quando pensamos no Dalai-Lama temos boa comparação. Tal como visto pelo Ocidente é configurado como uma imitação de segunda linha do catolicismo medieval: vem de um regime feudal, de um sistema teocrático e monacal, chamam-no de Sua Santidade, título a que nunca teve direito, porque é exclusivo do papa (3), imiscui-se alegremente na política e todos acham natural que o espiritual e a política se misturem nele. Mas fora o papa tal já não se admitiria.

Para esta duplicidade de discurso concorre a profunda ignorância dos ocidentais, nomeadamente de muitos católicos, que manifestam simpatia pelo budismo tibetano. Se o comum percebesse que o budismo Mahayana não é um humanismo, que o conceito de pessoa é-lhe absolutamente estranho, talvez pensasse duas vezes antes de simpatizar com ele. Pessoalmente prefiro o budismo Theravada, mas não imponho a terceiros as minhas simpatias. O que é relevante é que o que leva a simpatizar com o Dalai-Lama é no fundo um profundo equívoco: atribui-se-lhe o que de bom se vê no cristianismo, com a vantagem de não ser vinculativo. Acumula o lado simpático ao aspecto turístico. Mas no fundo quem mais diz com ele simpatizar, mais desrespeita a efectiva diferença da sua cultura (4).

Nesta matéria João Paulo II tinha vantagens. Era polaco, por isso exótico. Vinha de um país comunista, por isso não era visto “como nós" no ocidente. Por isso, o que tinha de conservador era olhado com alguma condescendência, quase como algo de folclórico: “é natural não são tão sofisticados como nós no Ocidente”. No fundo, perdoava-se-lhe o conservadorismo, por se achar que era algo provinciano, sem os nossos deveres de sofisticação.

Ora, Bento XVI não tem essa vantagem, é demasiado ocidental para lhe perdoarmos. Não tem direito nem ao exotismo, nem ao folclore.

1 Uma anedota contada por Peter Seewald representa bem a inteligência em Ratzinger. Perante alguém que faz a crítica rotineira à tradição como reaccionária Ratzinger responde: “a igreja é uma verdadeira democracia, até os mortos votam”. Poucas vezes se sintetizou tão bem o sentido da História, a comunhão dos santos e a tradição de um só golpe. Apenas faltaria referir que votam igualmente os nascituros.

2 Seria um curioso exercício literário escrever encíclicas papais na versão dos pós-modernistas, cheias de certezas dubitativas.

3 Alguns patriarcas orientais têm direito ao título de Sua Beatitude.

4 Saliento que a minha crítica é feita aos que apreciam o Dalai-Lama e não à pessoa em si. Ele não tem culpa de a maioria das pessoas não perceberem que o budismo é fundamentalmente diferente do cristianismo.

2 comentários:

maria lisboa....... disse...

"A igreja católica teve a sorte de ser a única soberania que teve num século só homens inteligentes e cultos à sua frente. As nossas democracias não podem dizer o mesmo. O que diz muito sobre os nossos critérios de escolha como povos e a nossa falta de exigência." diz.
Tem razão quando descreve "soberania" como Igreja, neste caso uma mais entre muitíssimas, a Católica. Minoritária entre as todas em número. Maioritária em poder político, o que vai contra tudo o que Jesus tentou em vão ensinar. As Igrejas não deviam ser soberanas de nada. Deviam propagar a palavra dos Profetas, absolutamente nada mais. Menos impor o que os "homens de carne e osso" como Papas, Bispos, Padres, Imanes, Monges etc pensam que deveria ser ou acontecer no mundo. Na democracia erramos nós. Basta ver como e em que gentalha vota o português. Na Igreja não podemos errar. Habemos Papa! Pois é? Pois toma lá gostes ou não. Têm os homens que decidem quem é Papa mais e melhores critérios que eu? Só faltava. Sou humano de segunda ou algo assim?
Um dia os Papas e todo o Clero eram homens de família com filhos e mulheres. Alguns até tinham amantes e filhos “bastardos”. Era normal.
Agora é escandaloso que algum membro o faça. Porquê? Todos sabemos as razões que levaram a Igreja a não deixar casar ninguém dentro dela. Nunca Jesus disse essa barbaridade. Foi o “homem” e daí nasce a lei divina. Divina???? Vinda dum homem? E por aí fora….Leis detrás de leis, feitas pelo homem em nome de um Deus e de um filho dele.
O El-Corão fala da Virgem Maria e respeita Jesus como um grande Profeta, por exemplo. Não comem carne de porco….Foi Alá que disse para não o fazerem? Claro que não. Todos sabemos a razão, no entanto eles não comem… As “Igrejas” estão tão cheias de defeitos como o número de homens que lá estão dentro, falando de forma totalmente deturpada em nome de Deus. Todos o sabemos. TODOS.
Diz que este papa é um homem muito inteligente…É-o. E depois? Isso fá-lo um bom líder religioso? Um bom Papa? Os outros não o eram? Tiveram a oposição católica que este teve, tem e terá sempre até morrer? Não. Porquê? Mal amado? Não. Não amado, que é bem distinto.
Os piores malvados do planeta, todos eles foram inteligentes. Hitler era um génio. Do mal, mas um génio, por exemplo.
Nunca foi necessário defender um Papa no seio dos próprios católicos como nós, eu. Agora sim. Este artigo, bem escrito e de forma muito inteligente, fá-lo. Mas não chega para convencer. Só a verdade convence, não o que nos foi dito de geração para geração. Veja o que fizeram com as escrituras do Novo Testamento. Quem escolheu estas???? Que se lêem na Bíblia? Onde estão as outras? De Maria Magdalena, por exemplo? Essa mulher fantástica, tão amiga de Jesus e rica, de boas famílias que o “homem” depois, dentro da própria cristandade, chamou de rameira e pobre? Onde está a verdade?
Foi, é e será por estas interpretações do “homem” e da deturpação disparatadíssima do que os contemporâneos de Jesus realmente escreveram, que tanto sangue foi e será derramado em nome do divino quando realmente o que estava em jogo era o poder, a ganância e a escravidão do ser humano por um punhado de gente também humana e má. Tudo em nome de Deus.
Lei principal de Jesus: REPARTIR, DAR!!!! ( DE BEBER, DE COMER ) O mundo está cheio de bebés famintos, de mães de pele e osso que nem leite têm para lhes dar….O líder da nossa Igreja como vive? Como viaja? Como veste? Não só este, claro, mas mudou algo? Não. Piorou muitíssimo com o gasto extravagante num mundo de pobreza e dor. O Clero todo como vive? Com as outras posso eu bem. Sim são iguais. Isso faz-nos bons por acaso?
Papa mal amado? Não… Papa NÃO AMADO!!!

João Wemans disse...

A bordo do avião a caminho do Reino Unido, o Papa explicou que ele e a Igreja não querem ser atraentes, mas sim transparentes para Cristo e para as grandes verdades que Ele trouxe à Humanidade - cito um breve comentário de Aura Miguel, no qual também referia a grande humildade de Bento XVI.
É um homem que não carece de defesa; quem o ouve com atenção e confiança pode lucrar de muitas maneiras.