Poder
O poder é o mais obsceno dos vectores de análise da política hoje em dia. Dizer que se quer poder roça a indecência. O poder é substituído por expressões elípticas e algo frouxas como “necessidades”, “enquadramento geo-estratégico”, “gestão de finalidades”, “estratégia” e outras quejandas. O poder está escondido, vive clandestino. A Europa fala pouco em poder, envergonha-se do que tem, tem medo de o usar e escuda-se nas paráfrases e no silêncio.
Quando se fala pouco de alguma coisa apenas nos valem os instintos, o que em si pode ser uma boa coisa, mas é em geral uma desgraça no espaço público. No mundo partilhado é pela comunicação que se é eficaz, e, convenhamos, a palavra não é dos piores meios de o fazer. O gesto pode ser curto e a arma algo longa demais.
Aprendi a não idolatrar a simplicidade por si mesma, porque em geral esconde deficiência intelectual. Mas a igualmente admirá-la quando nos ajuda a orientar de forma clara por caminhos algo obscuros. Em termos simples, portanto, vejo várias formas de poder. O politico, que se reduz à força simbólica ou física, o económico, o cultural e o social.
O paradoxo que vivemos é que verificando cada uma das dimensões do poder, rapidamente chegaríamos à conclusão que a Europa tem todas as condições para ser, a larga distância, o maior de todos. O maior PIB do mundo, uma economia que tem uma tripla possibilidade de crescimento: a comum, pelo crescimento da economia, o crescimento pelo desenvolvimento dos países periféricos que a integram (um dos maiores sucessos da integração europeia) e o crescimento pela adesão de novos países. Quase meio bilião de pessoas, sendo o terceiro maior agregado populacional do mundo. E não meio bilião de chineses, mas meio bilião de europeus, incomparavelmente mais cultos criativos e desenvolvidos. O sétimo maior país do mundo em dimensão, com três milhões e meio de quilómetros quadrados que não são Sahará nem Sahel. E uma potencialidade de expansão geográfica imensa por todo o verdadeiro território europeu (que irrompe na Rússia e não em janízaras paragens).
Esta auto-imagem de impotência daquela que é potencialmente a região mais poderosa do mundo, e é-o já actualmente em muitos aspectos, é das situações mais caricatas que a História já viu, não fora a tristeza de um espaço público desértico como o Sahará explicar esta desolação. Porque este horror ao poder, qual a necessidade de ter poder?
O ser humano teve sempre esta desagradável tendência de não fazer aquilo que nós queremos que ele faça. Por isso ou lhe forçamos a alma, ou lhe forçamos o corpo. Mas para quê este vício de queremos impor a nossa vontade aos outros? Bom, desde logo, porque existem outros que tem esse vício e pode-se dar o caso de a sua vontade não nos agradar. Dá-se o caso igualmente de termos interesses ou valores que seriam violados caso tivéssemos de obedecer a vontades alheias. Em último, mas não menos importante, lugar, porque impor a nossa vontade aos outros pode ser muitas vezes a única forma de podermos ter vontade própria.
A vida mostra-se pelo poder, alimenta-se do poder, molda-se pelo poder. O que um animal ou uma planta podem fazer é limite para o que efectivamente fazem. Quem não quer ter poder nenhum nada quer fazer. A inacção, a passividade delimita-o. O horror ao poder é igualmente horror à vida.
É evidente que o exercício e o crescimento do poder implicam risco. Daí que vejamos os bem-pensantes fazer o ar de mais compungida obstipação (é o que de mais próximo vêem como sendo inteligência) dizendo que temos de ser ponderados, que temos de ter consciência das nossas modestas dimensões. Julgam-se realistas, mas em suma são apenas limitados.
A verdade é que se espalhou um pudor em relação ao poder que me parece doentio. A palavra é omitida, a realidade é evitada. Mas desemboca com frequência no ódio a tudo o que cheire a poder. Só que a parte inconveniente desta postura é que o poder é sempre sinal de vida e é ele que abre as possibilidades. Um país fraco decide pouco, escolhe pouco para o seu futuro. Trabalha em margens de manobra que são definidas por outros. O facto de, não apenas se aceitar este destino para a Europa, mas se querer esse mesmo destino, mostra tão-somente um ódio à possibilidade, à abertura, em suma, à vida. Odiar o poder, todo ele, é sempre sintoma suicidário, tanto quanto o idolatrar.
Mas odiar o poder é igualmente odiar a liberdade, porque o poder é sempre a condição empírica da liberdade. Salvo se pretendermos colocar a Europa em levitação ou em perpétuo orgasmo místico como Santa Teresa de Ávila (estado difícil de atingir para todo um continente e igualmente difícil de manter, se tal fosse possível) não há liberdade empírica sem poder. O paradigma do cauteloso, do ponderado oficial, do pretensamente realista, é assim o orgasmo místico. Julga que não precisa de trabalhar para o poder porque tem o seu jardinzinho interior. Mas como não tem a graça divina pura e simplesmente é destituído de graça.
Um das vertentes desta triste postura é uma ideologia de fonte anglo-americana que vê a Europa como a grande soft power por oposição aos Estados Unidos, que seria o hard power. A expressão tem o requinte imagético de um amolador de facas de cozinha, mas atrevamo-nos a traduzi-la. Soft power: potência mole. Será eventualmente ideia excitante para alguns, e o ponto máximo de excitação que pretendem encontrar na vida, mas temo bem que mais uma vez seja desiderato de impotentes.
Nunca tal me havia passado pela cabeça mas temo bem que tenha alguma lógica. Todos os realistas tendem para o cristianismo e para o dogma como se vê com os tomistas e fenomenologistas primeiros da escola de Husserl, por exemplo. Compreende-se que assim seja na perspectiva da ontologia. O cristão, pelo menos os ortodoxos ocidentais e orientais, tem de aceitar a presença real na hóstia. E sob o ponto de vista metodológico o facto de se ir à procura das coisas, como Husserl gostava de dizer, levou os seus discípulos a converter-se ao cristianismo, por razões que se começam a tornar cada vez mais transparentes, e mesmo a formar uma mártir como Edith Stein.
Já os idealistas tendem a estabelecer fontes autónomas de legitimidade. A Renascença colocou ao lado do cristianismo ideias pagãs no mesmo plano, de um só golpe enriquecendo o cristianismo e enfraquecendo o seu monopólio. O curioso é que percebi até que ponto na nossa época impera o idealismo. A nossa época é idealista na perspectiva da ontologia. E fica-lhe muito mal. Porque o idealismo em coração aristocrático cai bem e em bolsa burguesa cheira a grosseria.
Renunciar ao poder é renunciar à realidade. Odiá-lo é odiá-la. Negá-lo é negá-la. A realidade, da velha e banal raiz “res”, coisa, só pode ser agida através do poder. Bastar-se com um poder mole é querer ter um contacto mole com a realidade, com as coisas. Recusar ter poder, recusar falar sobre ele, é recusar a possibilidade de agir sobre a realidade. Um discurso que se instala na Europa contra a realidade, em nome de um idealismo de taberneiro, em que o mundo ideal impera, apelando apenas para o Direito, vagos valores nunca ou mal enunciados (a liberdade, a tolerância, etc.), é profundamente anti-pragmático e consequentemente amoral. A consequência é a inacção e o fatalismo. O mundo que nos rodeia é constituído por um conjunto de inevitabilidades. Que se nos impõem. É inevitável o declínio demográfico da Europa, a invasão migratória, o capitalismo selvagem, a adesão da Turquia, a decadência da Europa perante a Ásia, a dominação americana. O mundo das inevitabilidades é um mundo sem intensidade, sem suco vital, sem liberdade, e em suma sem importância.
O idealismo imperante que nega o poder e o considera obsceno é no fundo um mundo da desconsideração, do desprezo pela realidade. E tendo a realidade pessoas, e sendo elas o seu mais importante foco, é em boa verdade um mundo de desprezo pelo ser humano. Larvas enfiadas em casulos, acham a borboleta ridícula e efémera mas esquecem-se de outras vidas bem mais garridas a que o seu estatuto nem permite aspirar. E numa Europa que silencia o discurso do poder, apenas os instintos o dirigem, sem lugar para o adoçamento pela razão. O que se segue é previsível. É o que acontece sempre que prevalecem os instintos no espaço comum.
Alexandre Brandão da Veiga
5 comentários:
O mundo de que nos fala, com lucidez, é o da dissimulação do politicamente correcto e não tanto o do idealismo.
O idealismo deve existir declarado, através da conquista do poder como uma batalha nada prosaica.
Penso que a vantagem de votos Obama se deu pela recolha de idealismos patentes e latentes.
Mas nestas coisas lembro-me sempre do livro sobre o estado social português, compilado por António Barreto, segundo o qual Filomena Mónica dizia, no seu capítulo, que nos anos 60 a ambição deixou de ser um pecado. Será que voltou a sê-lo?
Simplicidade e complexidade são paradoxalmente entrelaçadas e elucidativas entre si. Qdo o livro Número-Primo -- Arte & Natureza foi apresentado aos meios de ensino ele foi esmagado (porque as crenças impedem o livre pensar do ser humano), foi escrito para que o sabor do saber levantasse a pessoa do Séc. XXI (pois soprava a liberdade nos anos 80) o que nos faria gozar de fato um bom futuro; mas vi que estamos atolados na miséria psicológica das crenças; e no curto tempo de vida de uma geração não se vê muitos que de fato e sinceramente estejam dispostos a fazer com que os ventos façam a Terra que podemos fazer.
"incomparavelmente mais cultos criativos e desenvolvidos" diz com certa razão,mas olhe que acabou na nossa geração...Nem a cultura antropológica nos safa..As mulheres e homens de amanhã são uma vergonha séria de incapacidade racional que choca...São os filhos da mediocridade política europeia ditada pelo facilitismo estatístico.Gostei muito do comentário!!!
Inez:O poder é nojento quando cai nas mãos erradas.Veja o caso Bush.Tal pai tal filho.Nós estamos agora todos a pagar os votos americanos da época.
Esta mãe devia ter feito alguma pedagogia positiva, dando graças por tudo que têm, numa fase em que há tanta pobreza e desemprego.Mas a sua ambição não deixa de ser positiva, porque provavelmente irá lutar por aquilo que deseja, inclusivé quem sabe encontrar um melhor emprego, apostar em ser uma empresária de sucesso, é sempre bom querer mais, com bom senso e inteligencia, ficar contente com o que já se adquiriu na zona de conforto,não é muito aconselhável!!
Este blog parece o cabaret da coxa..que horror.Como tratam as pessoas que comentam de forma organizada e crítica e depois vêm estes debochados com sede de fama mas assinam anónino...Dentinho,Sofia Rocha ( uff sem comentários,nunca li nada dessa,sou ouvi e tem cá uma língua... )Vaz Serra e Cavacos a comentar, tudo chiquíssimo e depois vem um só anormaloide falhado a abandalhar tudo numa vulgaridade invulgar e vocés deixam.Porreiro pá!
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