quinta-feira, 1 de abril de 2010

São Gregório Palamas crítico de Heidegger







Quando era criança passava no Norte de Portugal boa parte do meu tempo e dormia no que se chamava então o quarto do bispo. Era escuro e tinha duas imagens assustadoras para uma criança. Uma do Sagrado Coração de Jesus e outra do Sagrado Coração de Maria.

Nunca vi em Portugal São Gregório Palamas ser referido. Facto demonstrativo da falta de abertura que existe precisamente numa época que se diz aberta. A ele penso voltar noutras núpcias, mas não queria deixar de o referir e à sua importância fundamental para a compreensão da nossa época.

Ettore Perrella tem um trabalho maravilhoso de análise e tradução da sua obra. É um psicanalista que nas horas vagas traduz grego. A cultura italiana (como a alemã) é uma grande cultura e não se dedica apenas à boa culinária. Pensando em boa parte dos psicanalistas médios, traduzem em geral apenas o que a sua alma lhe diz ou pior ainda, lêem Hemingway, que lhes está bem mais acessível. Outros ainda dedicam-se a estudos por alto sobre personagens históricas para fazerem diagnósticos tão profundos quanto o latim que conhecem ao ler os documentos originais.... ou más traduções.

Parte da ideia é dele e por isso se o cito viso apenas não o roubar. Ele chama a atenção para o facto de o conceito de “coração”, “kardia”, ser central no pensamento teológico grego, aliás muito menos substancialista que o que resulta da tradição latina medieval e de que somos herdeiros. O coração é simultaneamente centro e abertura vital.

Não é acaso se estes dois conceitos são usados com um papel fundamental por Heidegger. Diz ele que o centro da clareira se afasta quando nos tentamos aproximar dele. E é de abertura do Dasein que fala.

Significativo este conceito de Dasein. Se por um lado se lhe tem de reconhecer uma evitação inteligente das conotações que têm as palavras “Homem”, “ser humano”, “pessoa”, indivíduo” (Heidegger pode ser chamado de muita coisa mas não é nem inculto nem tonto) tem igualmente de se reconhecer por outro que é uma evitação.

Esta dissonância, este desencontro permanente entre o centro e a abertura em Heidegger, mostra até que ponto ele era lúcido sobre o problema do homem moderno. E tem a mesma fonte que a evitação que é o Dasein.

O que fez Heidegger foi em certo sentido continuar o profundo percurso da imensa cultura alemã do fim do século XIX, mas que tinha os seus começos muito antes com Goethe. Ir aos gregos. Mas no seu caso, e desde o fim do século XIX, ir aos pré-socráticos, como os ingleses queriam ser pré-rafaelitas. O século XX inaugura-se querendo ser futurista ou “pré” qualquer coisa, o que são duas motivações próximas. Em suma quer-se evitar.

Neste sentido Palamas profetiza a existência de um Heidegger. Percebe que o percurso da cultura ocidental (com toda a sua imensa grandeza, saliento eu) sofria de um mal original. A separação entre a essência e acto, a tendência a substancializar o externo que redunda em visões ditas objectivas ou em idealismo (duas faces de uma mesma moeda puritana) estavam criar uma civilização de imensa glória, mas ao preço de uma separação do centro e da abertura.

Por isso a polémica da iluminação do Monte Tabor, polémica “bizantina” se a há, tem um pano de fundo bem mais pertinente para a nossa época do que parece. Por isso a Europa ortodoxa (Khomiakov é uma das suas faces e Soloviev outra) com a sua crítica (pertinente) e a sua intransigência (por vezes mera teimosia) da Europa Ocidental é fundamental para nos compreendermos.

Só os de cultura bizantina nos conseguem ver simultaneamente de dentro e de fora e dar-nos avisos que devemos ouvir, mesmo se nem sempre os devemos seguir.

Há imagens que são assustadoras para as crianças, e nomeadamente a imagem do coração que se mostra como centro e abertura, como solução de um problema que se torna impossível resolver seja pela via da objectivação seja pela via da idealização. Mas é este homem moderno com a sua grandeza e profundidade, mas igualmente com os seus medos, que Heidegger representa. O mesmo Heidegger que, tendo abandonado o catolicismo segundo dizia, se benzia com água benta nas igrejas. Que medo é este o de um homem que se diz ao ar livre e tem medos infantis como se estivera num escuro quarto? É que o grande risco da modernidade é o de passar de aventura a mera evitação. Porquê? Porque teme o coração.





Alexandre Brandão da Veiga

2 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Depois de ler o "Ser e o Tempo", Heidegger ensinou-me a importância das aspas.

Boa Páscoa a todos.

PS: tenho que o ler o post com mais atenção, agora estou com tempo limitado.

Dionísio Anacoreta disse...

http://ifilosofia.up.pt/gfm/?p=activities&a=ver&id=500