quarta-feira, 3 de março de 2010

A República de António Costa

A Câmara de Lisboa assinou um protocolo com a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Pretende «associar as características do regime republicano aos valores da cidadania numa sociedade democrática» (ponto 2.1) e, simultaneamente, «aprofundar o conhecimento dos acontecimentos», «até à época actual» (ponto 2.2).

Trata-se de uma contradição nos termos: como vamos associar a I República aos «valores da cidadania nuna sociedade democrática» se, como todos sabemos, esta revolução substituiu um regime constitucional, com alternância democrática, imprensa livre e liberdade de culto por um regime de partido único, sem liberdade de imprensa, onde se confundiu laicismo com ateísmo jacobino e houve lugar para perseguições aos sindicatos? Já para não falar no crime fundacional que constituiu o assassinato do Chefe de Estado.

E o que dizer do que se passou depois na chamada «longa noite» com o mesmo sistema de partido único, sob a capa de União Nacional, a censura e o condicionamento das liberdades religiosa, sindical e de associação?

Temos assim 64 anos de República, ou de ditadura, ou das duas coisas. Diz António Costa que a II República não conta. Defende então uma memória ideológica? Uma espécie de historiografia de supermercado em que se vai buscar, a cada prateleira, apenas o que se quer ter em casa? Se os valores democráticos da República só contam a partir de 74, que centenário é este celebrado com tanta antecedência?

Não me coloco contra estas comemorações que confundem o que esteve para ser, com o que foi. Nem proponho, pelo contrário, que se celebre a República confiando no desfecho autofágico das comemorações expostas ao ridículo de uma propaganda anacrónica, desnecessária, dispendiosa.

Proponho que se aproveite esta oportunidade histórica para se incentivar a investigação e a divulgação do que esteve para acontecer, mas não aconteceu, e do que realmente aconteceu. Talvez assim se resgatem alguns valores da ética que, aparentemente, precisa de não ser republicana para ser verdadeiramente ética.

4 comentários:

OCTÁVIO DOS SANTOS disse...

Muito bem. Subscrevo na íntegra. Mas não fique à espera de «incentivos à investigação». Esta gentalha gosta é de propaganda e de doutrinação.

joão m. m. wemans disse...

Muito bem. Não subscrevo na íntegra; pois não me conformo com o equiparar a I República e o Estado Novo! A II República conta, sim, e com muitos aspectos positivos - que também deviam ser alvo de investigação (e já o são).

Ricardo Alves Gomes disse...

Inez,
Há-de ser tão lícito assinalar a República como a Monarquia. Mas aquela está com um problema que nesta soa a virtude, sabe?
Tal como a Cultura, a República costuma ser tida como património da Esquerda, dos socialistas, em particular.
Ora, com o PS no Poder, tanto a nível municipal como central, e ainda largos sectores social-democratas, que pouco se diferenciam, o resultado é o "asfixiante Bloco Central" do Sistema, ver na propaganda ao Centenário uma boleia para expurgar a doença de que padece e alcançar alegadas legitimidades que, manifestamente, lhe faltam em 2010.
Uma "cortina de fumo" lançada de modo contraproducente por quem não enxerga que, neste momento, baralhar o objecto com o sujeito, em vez de redentor é estertor.
Na ânsia se cobrirem de flores, sob pretexto de enfeitarem o memorial, acabam por outra coisa não fazer que cavar mais funda a sua sepultura.
A ideia republicana não merece ser tisnada assim. Isso não é "ética", nem "serviço" à República.
Com republicanos destes não admira que , por reacção, haja mais portugueses a exclamar "Viva o Rei".
Convido-a a pensar nisso, pois creio que a Inez também não há-de desejar que a Causa Monárquica cresça à conta de "convertidos à pressão", entre credos esfumaçados e camadas de espuma.
À História o que é da História, à Política o que é da Política!
O que o seu oportuno post vem revelar é que esta política de ocasião já esteve mais longe de passar à História, quedando-se por notas de rodapé, por não ser digna de corpo de página.

Inez Dentinho disse...

Agradeço os comentários. Fiz esta intervenção na última Assembleia Municipal de Lisboa convidando António Costa a uma atitude de estudo e divulgação da verdade histórica. Chamou-me, ainda que simpaticamente, reaccionária e confessional. Não gostei. Não tanto pela tentativa de ofensa mas por ter entendido assim que o programa da CML para o centenário está perdido para o sectarismo e a propaganda, agora centenária.