quinta-feira, 4 de março de 2010

O que é a Europa? IV

Entremos no quarto critério: o mito da queda do império romano. Que disparate, dirão alguns. Vejamos então onde estaria o dislate.

Este critério tem duas partes, se bem repararmos. Por um lado temos de ver a relevância do império romano na actualidade. Em segundo lugar, o da relevância da sua queda, e da sua queda como mito.

A História de Europa é um permanente renascimento da ideia imperial. O simples facto de a palavra existir com esta relevância já é de si estranho. Afinal, na república romana o "imperium" era algo de bem mais trivial. Uma mera função militar e não um estado. E no entanto a Europa sente-se renascer com o renascimento do império, por múltiplas vias.

O renascimento carolíngio, o renascimento otoniano. Mesmo as Espanhas não fugiram a esta ideia imperial com Afonso VII, ou com o tsar dos búlgaros, ou o czar russo (ambas as palavras variantes de “Kaisar”, César). A Europa de Verdun de 843 é reproduzida em 1951 e em 1957 com a CECA e a CEE. Em modos diversos os Habsburgos, Dante, Napoleão, Bismarck e Hitler tentaram fazer renascer o império.

Trata-se de uma inércia histórica fortíssima, que aparece sob as mais diversas capas e com os mais diversos modelos. E se a Inglaterra a partir do século XVIII foge na aparência a esse modelo com o império colonial, ainda Henrique VIII ambicionou a coroa imperial. Mesmo na dominação fora da Europa de que se lembraram os países europeus? De fazer “impérios”, ainda por cima “coloniais”, expressões ambas romanas, e que teriam de ser analisadas mais de perto para se verificar o que têm de nada trivial ou justo. A actual União Europa é a reactivação desse complexo, para falar na linguagem dos psicanalistas, e não é estranho que uniões africanas, asiáticas e quejandas tenham um sabor de postiço, de imitação. É da Europa que nasce esse mito de unificação. A fórmula de Barraclough, unidade na diversidade, para definir a Europa descreve tanto as nossas angústias como a nossa grandeza.

A queda do império romano é um mito. A frase parece estranha, porque a títulos bem diversos, bem sabemos que o império morreu. Seja em 476, data simbólica, seja, noutro momento, seja numa contínua evanescência, o império romano acabou. Parece por isso paradoxal afirmar que se trata de um mito. No entanto para percebermos a sua natureza mitológica temos de olhar para Bizâncio, onde o mito inverso permaneceu: o mito da continuidade do império romano. Imperadores de origem arménia, no século XIII o império de Niceia. E no entanto, continuaram-se a chamar-se a si mesmo de “Romaioi”, romanos, por oposição aos “Latinos”, os da Europa ocidental.

Um mito não é forçosamente uma mentira. É uma história que tem força própria, que impulsiona para a acção. A Europa constituiu-se com base da ideia de “Translatio Imperii”, a translação do império (Peter Sloterdijk percebeu esta parte, mas caiu no politicamente correcto e no indefinido, não sabendo completar a sua teorização). E todo o pensamento político europeu foi marcado pelo império romano caído. Pelas modalidades da sua sucessão (partilhada pelos vários soberanos, ou concentrada no imperador, separando o gládio e o pálio, ou juntando em teocracia ou cesaropapismos, ou nos sistemas regalista, galicano ou ultramontano). Mas também pelas modalidades da sua reconstrução. Os já citados casos dos Otonianos, Habsburgos, Dante, Napoleão e da União Europeia.

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