O que é a Europa? III
As contribuições do cristianismo foram tão vastas quanto as do paganismo e mais contínuas nos últimos dois mil anos. Não há terreno da nossa vida que não seja por ele marcado. A nossa concepção das idades humanas, do corpo, da sensibilidade, da estética é determinada pelo cristianismo.
A nossa paisagem, as nossas cidades, os nossos conceitos, nada deixou de passar pelo crivo cristão. Mentira tem coloração bem diversa em grego que hoje em dia. O que seja a dimensão da fragilidade humana e como a ela se deve reagir está marcado pelo cristianismo. Girard disse-o bem: o cristianismo traz ao mundo uma fundamental inovação antropológica – a vítima é inocente. Uma civilização assente nesta conclusão e premissa tão estranha e improvável só poderia dar resultados inesperados. Que todo o bicho homem seja pessoa, outro conceito improvável, também traz o inusitado. Com o cristianismo a Europa constrói-se sobre a improbabilidade. A Europa é a civilização improvável por excelência.
O nosso maior pecado e maior virtude como europeus, a abissal diferenciação sentimental que o cristianismo induziu, é marca disso mesmo. Quanto mais se estuda a patrística e a filosofia medieval, seja europeia ocidental, seja bizantina, mais vemos que não há duas frases que possamos dizer que não estejam marcadas por esse pensamento. “Objectivo” e “subjectivo”, os mais elementares conceitos da lógica com que laboramos no dia a dia, estão marcados por uma leitura restante de Boécio, mas sob o olhar cristão. A tonalidade afectiva de cada uma das palavras que usamos foi delimitada pelo cristianismo, a um ponto que pouco conseguimos dizer sem essa marca. E o célebre espírito científico como oposto ao cristianismo vai beber triplamente à sua fonte (a valorização positiva do infinito, a bondade do corpo e da matéria, o movimento rectilíneo como natural foram os impulsos para a ciência moderna).
É evidente que existem heróis de pacotilha que afirmam que ultrapassaram o cristianismo. São esses os primeiros a não o conseguir fazer. A dificuldade de enunciar as filosofias antigas, que mesmo depois de mais de dois séculos de estudo crítico ainda são objecto de grandes equívocos, os limites com que podemos enunciar o pensamento hindu, budista, confucionista, têm a ver com um dado trivial: nenhuma cultura pode ser integralmente transposta noutra. Mas no caso da Europa têm a ver com um dado que lhe é peculiar: é que o elemento de força é o mesmo que gera a dificuldade de transposição. Foi o cristianismo que deu à Europa a abertura para estudar outras culturas. Se todas a culturas são etnocêntricas, talvez a europeia seja a que o é menos. Na Europa estudam-se todas as culturas. Vejo com dificuldade que no Paquistão se estude Plotino ou na Turquia São Gregório Palamas, salvo em pequenos seminários ortodoxos isolados.
Perceber o paganismo indo-europeu e o seu contributo foi um acto de reconquista de uma herança em parte perdida e em parte filtrada. Sair do cristianismo é a tentativa inversa e em geral mal conseguida. É esse, quer se queira quer não, o nosso ambiente natural. Tenho a prova disso com frequência quando começo a falar como um grego, hindu ou um budista. A plateia tende a ficar chocada porque não uso a linguagem aproximativa, mitigada e propagandística dos que apresentam essas culturas no fundo como uma espécie de cristianismo exótico. A maioria das pessoas adora as outras culturas desde que não sejam plenamente confrontadas com a sua diferença. Adoram contemplá-las como se vêm os leões no circo ou no jardim zoológico: com barras protectoras. Dá-se o caso de as barras protectoras serem cristãs. Por isso os cultores do multiculturalismo no fundo são pequenos burgueses que vão passear ao fim de semana ao jardim zoológico. Reconhecem o leão à distância, mas não querem ter intimidade com ele. A sua simpatia é directamente proporcional à distância que com ele estabelecem.
Seria obviamente lírico tentar sequer fazer uma síntese do contributo do cristianismo para a Europa. O que interessa salientar é que é tão presente que dele não se escapa, e tanto menos quanto mais se acha que é obra fácil fazê-lo.
A nossa paisagem, as nossas cidades, os nossos conceitos, nada deixou de passar pelo crivo cristão. Mentira tem coloração bem diversa em grego que hoje em dia. O que seja a dimensão da fragilidade humana e como a ela se deve reagir está marcado pelo cristianismo. Girard disse-o bem: o cristianismo traz ao mundo uma fundamental inovação antropológica – a vítima é inocente. Uma civilização assente nesta conclusão e premissa tão estranha e improvável só poderia dar resultados inesperados. Que todo o bicho homem seja pessoa, outro conceito improvável, também traz o inusitado. Com o cristianismo a Europa constrói-se sobre a improbabilidade. A Europa é a civilização improvável por excelência.
O nosso maior pecado e maior virtude como europeus, a abissal diferenciação sentimental que o cristianismo induziu, é marca disso mesmo. Quanto mais se estuda a patrística e a filosofia medieval, seja europeia ocidental, seja bizantina, mais vemos que não há duas frases que possamos dizer que não estejam marcadas por esse pensamento. “Objectivo” e “subjectivo”, os mais elementares conceitos da lógica com que laboramos no dia a dia, estão marcados por uma leitura restante de Boécio, mas sob o olhar cristão. A tonalidade afectiva de cada uma das palavras que usamos foi delimitada pelo cristianismo, a um ponto que pouco conseguimos dizer sem essa marca. E o célebre espírito científico como oposto ao cristianismo vai beber triplamente à sua fonte (a valorização positiva do infinito, a bondade do corpo e da matéria, o movimento rectilíneo como natural foram os impulsos para a ciência moderna).
É evidente que existem heróis de pacotilha que afirmam que ultrapassaram o cristianismo. São esses os primeiros a não o conseguir fazer. A dificuldade de enunciar as filosofias antigas, que mesmo depois de mais de dois séculos de estudo crítico ainda são objecto de grandes equívocos, os limites com que podemos enunciar o pensamento hindu, budista, confucionista, têm a ver com um dado trivial: nenhuma cultura pode ser integralmente transposta noutra. Mas no caso da Europa têm a ver com um dado que lhe é peculiar: é que o elemento de força é o mesmo que gera a dificuldade de transposição. Foi o cristianismo que deu à Europa a abertura para estudar outras culturas. Se todas a culturas são etnocêntricas, talvez a europeia seja a que o é menos. Na Europa estudam-se todas as culturas. Vejo com dificuldade que no Paquistão se estude Plotino ou na Turquia São Gregório Palamas, salvo em pequenos seminários ortodoxos isolados.
Perceber o paganismo indo-europeu e o seu contributo foi um acto de reconquista de uma herança em parte perdida e em parte filtrada. Sair do cristianismo é a tentativa inversa e em geral mal conseguida. É esse, quer se queira quer não, o nosso ambiente natural. Tenho a prova disso com frequência quando começo a falar como um grego, hindu ou um budista. A plateia tende a ficar chocada porque não uso a linguagem aproximativa, mitigada e propagandística dos que apresentam essas culturas no fundo como uma espécie de cristianismo exótico. A maioria das pessoas adora as outras culturas desde que não sejam plenamente confrontadas com a sua diferença. Adoram contemplá-las como se vêm os leões no circo ou no jardim zoológico: com barras protectoras. Dá-se o caso de as barras protectoras serem cristãs. Por isso os cultores do multiculturalismo no fundo são pequenos burgueses que vão passear ao fim de semana ao jardim zoológico. Reconhecem o leão à distância, mas não querem ter intimidade com ele. A sua simpatia é directamente proporcional à distância que com ele estabelecem.
Seria obviamente lírico tentar sequer fazer uma síntese do contributo do cristianismo para a Europa. O que interessa salientar é que é tão presente que dele não se escapa, e tanto menos quanto mais se acha que é obra fácil fazê-lo.
2 comentários:
Parabéns pelo "triptico" sobre Europa, e, em especial, nesta terceira parte, sobre a maneira como o cristianismo informa todo o ambiente estético cultural e psicológico em que nascemos.
A par com o conceito de "vítima inocente" evocado, disse alguém que Cristo nos trouxe o Perdão - revolucionando o mundo.
A ideia (e realidade) do martírio é também subjacente à nossa civilização. Desconhecendo dados importantes do nosso ser Europeu, não admira que outras realidades culturais nos fascinem - e assustem.
- valorização positiva do infinito
- bondade do corpo e da matéria
- movimento rectilíneo como natural
não entendi o significado destas três ideias/conceitos. peço desculpa, paciência mas esclarecimento ao autor do seu significado.
quanto ao facto dos outros (não europeus) não estudarem Santos, como valor europeu nada me foi transmitido sobre Djinns ou outros seres mitológicos. o (pouco) que sei procurei.
caso não faça mais interpelações estou deliciado por este autentico Pentateuco sobre a Europa. A.B.Veiga revela uma capacidade de síntese notável, uma cultura vastíssima e rendo-lhe a minha modesta homenágem - é sem dúvida alguém especial. parabéns!
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