Marziano Capella. Nozze di Filologia e Mercurio, Bompiani, 2001
Conheço pessoas que, na sua vontade de criticar a modernidade, se desfazem em elogios aos manuais escolares do tempo do salazarismo. “Antigamente é que era bom”. Sejamos pois consequentes. “Antigamente”? 1940? Sessenta anos? Depois da revolução francesa, da inglesa, da industrial, da queda de monarquias por toda a Europa? Moderno?
Aceitemo-lo. Se queremos algo que seja mesmo antigo peguemos então em coisa com quinze séculos e com mais de mil anos de uso escolar. Manual escolar por excelência, as “Núpcias de Filologia e de Mercúrio” são um dos exemplos máximos de sucesso editorial. Mil anos como livro escolar em toda a Europa, ou em parte dela. É obra, e vale a pena ser reconhecida.
É evidente que os eruditos tentam aproximar-se do significado da obra, e das intenções do autor de múltiplas formas. Se um jogo, se um livro de uma civilização romana em decadência e deprimida, de um homem que sabe estar a cultura em declínio (premissa algo abusiva), que pretende salvar o que restava da cultura clássica, ignoro. Poder-se-ia dar o caso de a vontade enciclopédica mostrar mais uma vez o encerramento de um ciclo. Assim fez Aristóteles e a sua escola perante a polis grega que se esvai (mas não morre), Varrão e Plínio o Velho com Roma republicana que fenece, Marciano Capella e mais tarde Isidoro de Sevilha com o mundo antigo. Os ciclos culturais são bem mais complexos e é muito difícil enunciar sínteses na matéria. Pode-se afirmar que as enciclopédias são igualmente abertura de um novo ciclo: o helenístico e o visigótico como o da enciclopédia francesa o teria sido da modernidade.
A verdade é que esta obra mostra um humor variável, e sobretudo capacidades variáveis e competências não uniformes. Prolixo nas humanidades, parco nas ciências, tendendo a ser algo superficial em ambas.
Imagine-se um homem que hoje em dia quisesse por si sintetizar toda a cultura da sua época. É natural que claudicasse na matemática ou na música, ou na História, ou na literatura. Marciano pega na enciclopédia da sua época, nas sete artes liberais e tem o projecto ambicioso de as transmitir ao seu filho. Encenação teatral ou intenção verdadeira, não é importante para o caso.
Tente o leitor fazer esse exercício. Como sintetizar a nossa civilização como se a quiséssemos transmitir ao nosso filho? É obra.
Capella não é um génio. Mas por isso mesmo a sua obra tem um significado especial. Lembro-me de uma vez ter ouvido um historiador dizendo que o historiador do pensamento está habituado a lidar com génios, o historiador comum compraze-se em lidar com medíocres.
Platões aparecem em dose homeopática na História e por isso, se dizem mais sobre a sua época do que o comum dos mortais, dizem menos por si do que era a sua época do que os medianos.
Marciano não era medíocre no plano do século, mas na vasta paisagem histórica cola-se à massa dos ignotos. Homem de grande cultura e cultura estruturada, é antes do mais para mim um bom testemunho psicológico, testemunho do que é a paisagem mental de um homem culto do fim do império romano do ocidente no âmbito latino.
A retórica é um meio eficaz de transmitir mensagens, mas surte o efeito de véu num jogo de espelhos em que muitas vezes é difícil destrinçar o que nos aparece e o que efectivamente representa. Marciano escrevia efectivamente para o seu filho? Será um comovente testemunho de alguém que visa proteger a todo o custo uma retórica e uma cultura que sabe ameaçada pelas invasões bárbaras e a queda do império? A ameaça seria assim tão grande afinal nessa época? Seria a queda o império vista com tanta angústia por todos os seus habitantes e da mesma forma? Ou então estamos apenas perante um jogo retórico de que poderá eventualmente participar o seu filho? A obra deixa-nos esta dúvida. Não sabemos se estamos no registo do cómico ou do trágico, do amargo, do agridoce ou da alegria.
O mais importante sob o ponto de vista histórico é que mostra tanto a sofisticação, como o esgotamento do pensamento pagão tardio em língua latina. Só os autores cristãos em latim tiveram genialidade. E mesmo assim pela via mais da filosofia e da teologia que pela criação literária pura.
Mais uma vez pela curiosidade, Filologia é virgem como devia ser toda a donzela pagã e devia casar-se com alguém do seu nível. Dois elementos que o jornalismo imputa ao cristianismo e que mais uma vez se verifica serem originalmente de factura pagã. A virgindade das donzelas e a igualdade de ilustração dos nubentes são afinal um dado perene da cultura europeia.
Mas mais importante sob o ponto de vista da lição, mostra até que ponto a pedagogia cai rapidamente no jogo de espelhos, e até que ponto a retórica pode ser importante, mas pouco esclarecedora se for exclusiva. Este é uma das profecias de Platão que não são muitas vezes levadas a sério. A cada momento temos de verificar se o que estamos a impor às nossas crianças e jovens mais não é que um casamento de filologia e mercúrio mal assimilada, uma enciclopédia limitada e tendenciosa, que esquece muito do que se passa à nossa volta e do que é a herança passada, não preparando por isso de modo completo para o futuro.
Há algo de equívoco e mesmo de tenebroso em Capella. O que nos tem de ocupar é saber se todo o projecto educativo não tem forçosamente essas dimensões. Pelo menos quando se pretende completo. Se aliás quanto mais completo se pretende mais desperta a alegoria, a insinuação, o difuso.
Jung quando o seu filho lhe perguntava como educar os seus filhos respondeu que os deixasse crescer como as árvores. A desconfiança de Jung em reacção à pedagogia poderia ter extremista, mas não deixa de ser um bom aviso. É inevitável querermos educar com base numa enciclopédia, mesmo que não queiramos transmiti-la de forma orgânica. É inevitável que essa enciclopédia gere equívocos.
Mas pergunto-me se, ainda que pela via errada, Capella não terá mais mérito que quem esconde que existe uma enciclopédia, quem a oprime e ficciona a sua inexistência. O seu medo do conhecimento passa a ser então o motor da sua pedagogia, e é apenas o medo que transmite. Educar tem riscos, não o fazer gera desastres. Negar sequer a possibilidade de o fazer nasce apenas do medo. Por isso talvez Capella seja mais um aviso que uma proibição.
Alexandre Brandão da Veiga
http://www.liberonweb.com/asp/libro.asp?ISBN=8845291022
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