sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Winter Storm On Long Island 2010
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
SERMÕES AOS CANDIDATOS A ESCRITORES
Os desabafos pessoais são feitos a pessoas que gostam de nós. Fazê-lo com o público é puro exibicionismo.
Não existe o desafio da folha em branco. O que pode estar em branco são as ideias. Mas esse não é um desafio, é um defeito.
Quem quer fazer uma literatura acéfala cai sempre na autobiografia.
As pessoas que estão sempre em perpétua renovação, além de levarem uma vida muito cansativa, dão a entender que tudo o que fizeram antes não presta. Para quem tem sentido de indução facilmente percebe que isto significa que a última obra terá o destino das futuras na qualificação do seu autor.
Quem não sabe distinguir uma obra média de uma obra-prima tem de começar por ler antes de tentar escrever.
Quem escrevendo pretende mostrar que tem uma vida sexual muito activa demonstra escrevendo que ela não é suficientemente tentadora para o fazer deixar de escrever.
Quem quiser escrever destituído de sentimentos deveria rapidamente verificar que essa não é a única qualidade literária que lhe falta. Quem quer escrever com o sentimento esquece-se de que a tinta deixa uma marca mais perene no papel.
Quem considera que a cultura é um defeito num escritor está a falar na sua própria deficiência.
Aqueles que querem meter a todo o custo e a todo o momento imagens naquilo que escrevem, visando com isso dar um maior peso expressivo ao seu discurso, talvez devessem ponderar a hipótese de fazer banda desenhada.
Quem afirma só gostar de um estilo simples refere-se geralmente à sua incapacidade de lidar com o complexo.
Quem idolatra o grosseiro e o considera um passo indispensável na criação literária julga que o modo como se comporta em casa se pode arvorar em lei universal.
Mostra-se obcecado com a fealdade quem pretende esconder sob a capa de uma escolha o que mais não é que falta de alternativa.
Quem fazendo literatura pretende mudar o mundo deveria dar o primeiro passo nesse sentido mudando de profissão.
Não há problema nenhum em escrevermos para ridicularizarmos algumas pessoas, que frequentemente o merecem. Mas atenta no perigo de seres ridículo fazendo-o.
Escrever uma saga de família é possível mesmo que no fim da linha não se encontre criadagem ou escravos.
Um bom escritor tem pelo menos um dos requisitos para ser bom jornalista: sabe escrever. A um bom jornalista pode faltar tudo o resto.
Quem se banha na intranscendência não pode querer lavar a vida alheia. Falta-lhe a prática da água e do sabão.
Quem escreve obedecendo a um programa pode fazer coisas de qualidade. Mas se o faz não é o programa que o dita.
Não tem sentido esconder a falta de ideias com uma pontuação deficiente.
Os que afirmam que escrevem sobre o seu bairro, mas que em bom rigor se referem à universalidade não são generosos nem criativos. Com efeito, se escrevem apenas sobre o seu bairro é de desconfiar que não conheçam mais nada.
Aos escritores que se queixam permanentemente da incompreensão dos outros falta-lhes razão para se queixarem. Ou estão acima da chusma e isso é motivo de regozijo, ou estão no mesmo nível e não tinham razões para se meterem em trabalhos.
Quem usa a literatura como forma de sedução fracos dotes pessoais deve ter.
Quem quer fazer literatura regionalista perdeu uma vocação para fazer bons guias turísticos.
Só tem razão para se queixar do público quem nunca quis publicar.
Alguns escritores falam com recorrência dos livros que têm na gaveta por publicar como os melhores. Uma prenda anunciada tem de ser entregue. É de péssima educação omiti-lo.
Se estás obcecado com a alternativa de escrever algo de belo ou de útil pensa que não tem muita utilidade o que escreves se não for belo. Se a tua obsessão é imprimir fealdade ao que escreves descansa por que o mais natural é que o faças espontaneamente.
Se é tua única intenção transmitir ideias erraste na vocação e o mais provável é que erras executando-a. Se não quiseres transmitir ideias a tua insuficiência substituir-se-á tua vontade no sucesso da tua empresa.
Quem diz que a literatura é a coisa mais importante do mundo deveria fazer a experiência de deixar de comer.
Os que afirmam que a função da literatura é mostrar a experiência vital perdem em geral tempo a mostrar algo que não adquiriram.
Querer ir direito aos assuntos significa com frequência bater com a cara numa parede. Nada há de mais oblíquo que a simplicidade.
Leio por vezes textos enfeitados de vírgulas, parágrafos arrevesados, frases cortadas a meio. Percebo que respeites e dês visibilidade ao trabalho do tipógrafo. Mas não é a ele que compete fazer literatura.
Alguns dos que escrevem deliram inventando palavras novas a todo o momento. Já me elogiaram mais de um dizendo que inventa palavras novas. Só respondi: - Será que não são capazes de fazer nada de jeito com as que já existem?
Antigamente falava-se do estilo de um escritor, a gora fala-se de escrita. É justo: perderam o conceito e falta-lhes o estilo.
A escrita é acto de meros alfabetizados. Na melhor das hipóteses, de contabilistas. Noutras ainda de calígrafos. Para um escritor é apenas uma inevitabilidade prática. Tem de escrever, no sentido em que não se é escritor se não se gravar de alguma forma palavras num suporte. Falar da escrita de um escritor é o mesmo que usar a palavra cutelo quando se fala de um cirurgião. Continua-me a parecer mais difícil salvar vidas que cortar carne num talho.
Antes de saber escrever, a primeira coisa que um escritor deve saber fazer em cima de uma mesa é comer. Quem não sabe comer à mesa devia aprendê-lo antes de ter a pretensão de escrever.
A grosseria não é um requisito literário, mas apenas um defeito pessoal.
Queres ser escritor? Lembra-te que a coisa não depende da tua vontade. Uma pretensão legítima chama-se ambição, quando ilegítima presunção.
A vocação é exactamente o oposto da vontade. A segunda passa-te rapidamente se fores saudável. Se não passar é mais competente para o teu trabalho um padre ou um psicólogo.
Se queres escrever coisas que fiquem depois da tua morte é mais provável que o consigas elaborando o teu epitáfio.
É dever dos candidatos a escritores o de falarem muito. É menos tempo que dedicam a colocar no papel para todo o sempre os seus disparates.
O realismo na literatura é tarefa de poetas.
Alexandre Brandão da Veiga
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Marziano Capella. Nozze di Filologia e Mercurio, Bompiani, 2001
Conheço pessoas que, na sua vontade de criticar a modernidade, se desfazem em elogios aos manuais escolares do tempo do salazarismo. “Antigamente é que era bom”. Sejamos pois consequentes. “Antigamente”? 1940? Sessenta anos? Depois da revolução francesa, da inglesa, da industrial, da queda de monarquias por toda a Europa? Moderno?
Aceitemo-lo. Se queremos algo que seja mesmo antigo peguemos então em coisa com quinze séculos e com mais de mil anos de uso escolar. Manual escolar por excelência, as “Núpcias de Filologia e de Mercúrio” são um dos exemplos máximos de sucesso editorial. Mil anos como livro escolar em toda a Europa, ou em parte dela. É obra, e vale a pena ser reconhecida.
É evidente que os eruditos tentam aproximar-se do significado da obra, e das intenções do autor de múltiplas formas. Se um jogo, se um livro de uma civilização romana em decadência e deprimida, de um homem que sabe estar a cultura em declínio (premissa algo abusiva), que pretende salvar o que restava da cultura clássica, ignoro. Poder-se-ia dar o caso de a vontade enciclopédica mostrar mais uma vez o encerramento de um ciclo. Assim fez Aristóteles e a sua escola perante a polis grega que se esvai (mas não morre), Varrão e Plínio o Velho com Roma republicana que fenece, Marciano Capella e mais tarde Isidoro de Sevilha com o mundo antigo. Os ciclos culturais são bem mais complexos e é muito difícil enunciar sínteses na matéria. Pode-se afirmar que as enciclopédias são igualmente abertura de um novo ciclo: o helenístico e o visigótico como o da enciclopédia francesa o teria sido da modernidade.
A verdade é que esta obra mostra um humor variável, e sobretudo capacidades variáveis e competências não uniformes. Prolixo nas humanidades, parco nas ciências, tendendo a ser algo superficial em ambas.
Imagine-se um homem que hoje em dia quisesse por si sintetizar toda a cultura da sua época. É natural que claudicasse na matemática ou na música, ou na História, ou na literatura. Marciano pega na enciclopédia da sua época, nas sete artes liberais e tem o projecto ambicioso de as transmitir ao seu filho. Encenação teatral ou intenção verdadeira, não é importante para o caso.
Tente o leitor fazer esse exercício. Como sintetizar a nossa civilização como se a quiséssemos transmitir ao nosso filho? É obra.
Capella não é um génio. Mas por isso mesmo a sua obra tem um significado especial. Lembro-me de uma vez ter ouvido um historiador dizendo que o historiador do pensamento está habituado a lidar com génios, o historiador comum compraze-se em lidar com medíocres.
Platões aparecem em dose homeopática na História e por isso, se dizem mais sobre a sua época do que o comum dos mortais, dizem menos por si do que era a sua época do que os medianos.
Marciano não era medíocre no plano do século, mas na vasta paisagem histórica cola-se à massa dos ignotos. Homem de grande cultura e cultura estruturada, é antes do mais para mim um bom testemunho psicológico, testemunho do que é a paisagem mental de um homem culto do fim do império romano do ocidente no âmbito latino.
A retórica é um meio eficaz de transmitir mensagens, mas surte o efeito de véu num jogo de espelhos em que muitas vezes é difícil destrinçar o que nos aparece e o que efectivamente representa. Marciano escrevia efectivamente para o seu filho? Será um comovente testemunho de alguém que visa proteger a todo o custo uma retórica e uma cultura que sabe ameaçada pelas invasões bárbaras e a queda do império? A ameaça seria assim tão grande afinal nessa época? Seria a queda o império vista com tanta angústia por todos os seus habitantes e da mesma forma? Ou então estamos apenas perante um jogo retórico de que poderá eventualmente participar o seu filho? A obra deixa-nos esta dúvida. Não sabemos se estamos no registo do cómico ou do trágico, do amargo, do agridoce ou da alegria.
O mais importante sob o ponto de vista histórico é que mostra tanto a sofisticação, como o esgotamento do pensamento pagão tardio em língua latina. Só os autores cristãos em latim tiveram genialidade. E mesmo assim pela via mais da filosofia e da teologia que pela criação literária pura.
Mais uma vez pela curiosidade, Filologia é virgem como devia ser toda a donzela pagã e devia casar-se com alguém do seu nível. Dois elementos que o jornalismo imputa ao cristianismo e que mais uma vez se verifica serem originalmente de factura pagã. A virgindade das donzelas e a igualdade de ilustração dos nubentes são afinal um dado perene da cultura europeia.
Mas mais importante sob o ponto de vista da lição, mostra até que ponto a pedagogia cai rapidamente no jogo de espelhos, e até que ponto a retórica pode ser importante, mas pouco esclarecedora se for exclusiva. Este é uma das profecias de Platão que não são muitas vezes levadas a sério. A cada momento temos de verificar se o que estamos a impor às nossas crianças e jovens mais não é que um casamento de filologia e mercúrio mal assimilada, uma enciclopédia limitada e tendenciosa, que esquece muito do que se passa à nossa volta e do que é a herança passada, não preparando por isso de modo completo para o futuro.
Há algo de equívoco e mesmo de tenebroso em Capella. O que nos tem de ocupar é saber se todo o projecto educativo não tem forçosamente essas dimensões. Pelo menos quando se pretende completo. Se aliás quanto mais completo se pretende mais desperta a alegoria, a insinuação, o difuso.
Jung quando o seu filho lhe perguntava como educar os seus filhos respondeu que os deixasse crescer como as árvores. A desconfiança de Jung em reacção à pedagogia poderia ter extremista, mas não deixa de ser um bom aviso. É inevitável querermos educar com base numa enciclopédia, mesmo que não queiramos transmiti-la de forma orgânica. É inevitável que essa enciclopédia gere equívocos.
Mas pergunto-me se, ainda que pela via errada, Capella não terá mais mérito que quem esconde que existe uma enciclopédia, quem a oprime e ficciona a sua inexistência. O seu medo do conhecimento passa a ser então o motor da sua pedagogia, e é apenas o medo que transmite. Educar tem riscos, não o fazer gera desastres. Negar sequer a possibilidade de o fazer nasce apenas do medo. Por isso talvez Capella seja mais um aviso que uma proibição.
Alexandre Brandão da Veiga
http://www.liberonweb.com/asp/libro.asp?ISBN=8845291022