quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Batendo em Caim

Não é a obra mas a declaração que releva. Quando o autor obra pela declaração evitemos pois de obrar como ele.
Não é a blasfémia que se demarca. Blasfemo profundo só quem é profundo. A raspagem superficial fica na fundura que lhe é possível.
O que é argumentado é bem diverso: é que existem imoralidades no Livro, uma pouca vergonha. Pena que Marcião o tenha já dito há 1800 anos e que seja precisa toda a armadura das novas tecnologias para o que antes era uma intuição se tornasse em mera inépcia.
Lê o autor hebreu, grego, aramaico? Não, fica-se pelas edições paulistas, meritórias, mas mera versão popular. É que o autor faz parte do povo e daí retira toda a sua legitimidade cientifica. Ser povo passa a ser teorema coroado.
Que é condenado? O que existe em todas as fontes de base das civilizações. Acabemos com os gregos então. Poucas vergonhas. O pai Agamémnon mata a filha Ifigénia, a mulher Clitemnestra mata o marido e depois o filho Orestes mata a mãe e o seu amante Egisto. Pouca vergonha realmente. Isto para já não falar do filho que foi para a cama com a mãe. como bem se sabe de outros mexericos, uma pouca vergonha.
É que é a aldeia que agora sindica a urbe, o cura com seu dedinho apontado que anatemiza, bane e expulsa. E faz muito bem. Uma pouca vergonha.
É contra toda a grande cultura que temos que lutar, porque toda ela tem na base poucas vergonhas como estas. E faz muito bem, É uma vergonha termos de nos confrontar com a grande cultura, pode-se dar o caso de nos salientar a mediocridade.
A blasfémia ocupa-me pouco, salvo quando é grande. Porque a grande desperta, a pequena enfada. Marcião já havia dito o mesmo, que após 1800 anos alguém seja algo mais original.

Sejamos claros: obra moral apenas aquela em que ninguém mata ninguém, ninguém trai ninguém, em que é tudo bonzinho e dá beijinhos. Abaixo Homero, Ésquilo um porcalhão, Eurípides um tarado. Coinjunto de pervertidos. Sem dúvida.

Isto porque o autor de tom sacerdotal revela assim a sua fonte principal, plena de moralidade e bons costumes. Revelemo-la, tenhamos essa coragem. Em vez de Homero, dos Setenta e das suas imoralidades, algo de bem mais moral: o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Mas sem o Saci Pererê, que é malandro e nem sempre bom menino. E um pouco de telenovela mexicana mas sem os maus da fita que só desdouram a coisa.

Curvemo-nos pois pela sapiência. O estilete de Arquimedes foi vencido pelo lápis do merceeiro. E é justo. A época revela-se: quer-se moral e cheia de bons costumes, desde que isso esconda a realidade do ser humano. Tem razão o autor: a verdade é para se esconder. É grande demais.

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Aprender a viver

Apanhemos outro dos lugares comuns: “eu não preciso de mestres, aprende-se com a vida”. Como é uma das minhas ocupações andar a caçar espécimes antropológicos que pululam inconscientes no nosso século, mais uma vez tenho de tentar compreender o que realmente significa uma frase destas.

Mais uma vez a glória contestada seria a de uma sociedade cristã, medieval, Ancien Régime, ou quando muito burguesa, baseada no tão afamado patriarcado judaico-cristão. Estes lugares comuns já foram corridos em anteriores núpcias, por isso nem perco tempo com eles.

A questão é a de saber se é aqui que realmente se encontra o fundamento da necessidade de mestre.

Podíamos ir algo mais longe e lembrar que é sobretudo entre os animais mais inteligentes que existem períodos de aprendizagem guiados por um mestre (tipicamente os pais, mas podendo ser outros membros do grupo, como se passa com os elefantes ou os primatas). E que por isso mais uma vez o lugar comum mostra apenas uma nostalgia do nosso passado réptil, tanto quando o fascínio pelas iguanas, sáurios e rastejantes.

Poderá não ser injusto, mas é forçosamente incompleto.

É sempre algo arriscado generalizar, mas a verdade é que as grandes correntes de pensamento da antiguidade são escolas de vida. Em algumas existe uma perspectiva meramente técnica na aparência, como em algumas escolas retóricas e sofísticas, mas inequivocamente o projecto das escolas filosóficas é sempre mais que intelectual. São escolas de vida. Com mestres. Não se aprendem apenas conceitos e métodos. Aprende-se a viver. Um estóico quer viver de modo diverso de um cínico. Um platónico tem atitude de vida diversa de um epicurista.

O budismo estabelece-se igualmente como escola de vida, sobretudo na sua vertente mais antiga e próxima do original, a Theravada. Existe um mestre por excelência, o Buda. Com o confucionismo passa-se o mesmo. O guru hindu tem o mesmo papel. Epicteto, Epicuro, Pitágoras são outros bons exemplos disso. E com Cristo há algo mais que uma escola porque é toda uma vida que está presente como exemplo, e factos de uma vida, mas existe igualmente um mestre e uma palavra que é transmitida.

O cristianismo antigo conforma-se a partir do século II como uma escola e entre o século II e o V o movimento é em grande medida o da luta entre o professor, o teólogo, e o bispo pelo magistério. No século IV já não encontramos nem Tertulianos, nem Orígenes. E constroem-se não templos, mas basílicas, não tanto casas onde habita Deus, como o templo antigo, mas locais onde se reúnem pessoas, como as basílicas, locais de troca de experiências de vida por excelência, e igualmente de troca de bens e de ensinamentos. A igreja vê-se como uma escola e fala das outras correntes como heréticas, ou seja, seitas, escolas de pensamento diversas (o conceito de heresia é grego antes de cristão, apesar da marca que o cristianismo lhe deu).

Retenhamos algumas ideias principais. A ideia de escola e de mestre não é nem europeia, nem patriarcal, nem cristã, nem burguesa. A ideia de escola associa-se sempre a sociedades organizadas e tanto mais é desenvolvida quanto mais complexa é a sociedade. Existem mestres, existem escolas, aprende-se com pessoas. O lugar comum trai-se como mais uma forma de fascínio do primitivismo, como tantos outros na nossa época. É verdade, mas ainda insuficiente.

É evidente que se pode invocar o argumento de que a própria ideia de escola de vida fomenta o totalitarismo, e a falta de liberdade e sentido crítico. Não me parece. Aristóteles não era um submisso por estar na academia, a própria academia evolui para um pensamento bem diverso do de Platão, Pedro e Tiago tinham personalidades bem diversas e o cristianismo não se tornou um movimento estéril seja intelectual seja vivencialmente.

Quem ataca a existência de mestres e de escolas de vida lança o ataque a alvo errado e pelos motivos errados.

Hoje em dia passa por ridículo alguém pretender ser mestre da vida ou querer sequer ter um. Aprender, aprende-se com a vida, com as experiências.

Que está por detrás do lugar comum da fauna?

Nenhum ser humano sabe da vida, ou pelo menos é capaz de a ensinar. Não existe conhecimento sobre a vida. Aprende-se de forma impessoal com base em experiências e vivências. No fundo os seres humanos são tontinhos em compreensão ou em transmissão. O ser humano é impotente mais uma vez, para uma ou outra coisa ou para ambas.

A aprendizagem é impessoal no fundo. Se um ser humano nos dá ensinamento não é por o saber formular ou ter a capacidade de ensinamento, mas apenas porque nos serviu como espectáculo. O sorriso do selvagem numa savana ou o médico que salva vidas no meio de uma cidade pobre são dados como mestres da vida. Não pelo que ensinam ou sabem ensinar, mas pelo simples facto de se nos terem sido apresentados como espectáculo. Os acontecimentos ensinam-nos, as situações ensinam-nos, quando muitos os nossos estados mentais nos ensinam.

Na construção deste tipo de argumento existe um mundo composto de uma massa impessoal à nossa volta e dos nossos estados mentais. É um mundo despovoado, ermo, sem pessoas, que vê quem afirma tal coisa. Um mundo primitivo e réptil talvez. Mas sobretudo um mundo deserto, em que as pessoas nunca assumem o seu papel de pessoas, centros de vida autónomos.

Por isso quem afirma que não existem mestres nem escolas de vida julga falar em nome da liberdade, mas fala apenas a favor da estepe mongólica.

Vistos os fundamentos, quais são os efeitos? O aumento dos grupos sectários, de cursos de motivação, de educação sexual, seitas, procura de religiões exóticas. Tendo esvaziado da sua paisagem o ser humano e o ser humano próximo, procura-se o humano em todo o lado no longínquo, no estranho, no distante.

O tipo desta criatura é santo António, o do deserto e não o de Lisboa. As tentações perseguem-no, mas a finalidade desconhece-a. Por isso santo António é muito mais actual do que se julga. O fascínio, a proximidade que muitos sentem com o surrealismo da obra de Bosch não é superficial. A diferença é que Bosch e António tinham fito e obra, ambas faltando a quem estudamos.

A insatisfação – e a alegria alvar, que é a mesma coisa – que se retira destas soluções mostra apenas que quem criou o deserto à sua volta carece de tal forma de sociedade que até com formigas está disposto a associar-se. Torna-se por isso bem menos livre e mais seguidor que quem acusa de o ser. Entre a sua liberdade e a prisão de Aristóteles ou de São Pedro que cada um saiba melhor escolher.



Alexandre Brandão da Veiga

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domingo, 4 de outubro de 2009

Trovas antigas II

Não pensava aqui voltar tão cedo, nem continuar com o Enquiridion, de Epicteto, nem tratar deste tema, que é a morte. Inspirado, no entanto, por este post, escrito neste novo blog - que certamente irá dar que falar -, assim aproveito para saudar alguns velhos amigos, que connosco aqui viveram e morreram e agora morrem, com bravura, noutro lado.
Que morram bem, que é, talvez, o que, na vida, temos de mais importante para fazer. Ave, Pedro Norton e Manuel Fonseca; ave, Vasco Grilo e Pedro Marta Santos; ave, Eugénia Vasconcellos: aqueles que (também) vão morrer, vos saúdam!
No entanto, é bom lembrar que «não são as coisas o que atormenta os homens, mas os princípios e as opiniões que os homens formam sobre elas. A morte, por exemplo, não é terrível. Se o fosse, assim teria parecido a Sócrates. Aquilo que faz com que a morte se torne horrível é o terror que sentimos a partir da opinião que formámos dela.»

EPICTETO, Enquiridion, 5

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sábado, 3 de outubro de 2009

Trovas Antigas I

Começo com este pequeno texto extraído do Enquiridion, ou Manual de Epicteto, escrito por um seu aluno, Lúcio Flávio Arrio, no princípio do século I da nossa era, uma pequena série de pequenas transcrições de textos antigos cuja aplicação à realidade de hoje não deixa de nos impressionar.

«Sentaram alguém num lugar melhor que o teu num jantar ou numa cerimónia? Saudaram-no a ele primeiro e ouviram o seu conselho, e não o teu? Se essas coisas são boas, deverias alegrar-te por aquele a quem aconteceram; se são más não deverias afligir-te, porque não te aconteceram a ti. Lembra-te que, se para adquirir coisas exteriores, que estão fora do teu controle, não utilizas os mesmos meios que os outros, também não podes esperar que te considerem merecedor de uma recompensa igual à que eles tiveram. Como poderia alguém que não vai a casa dos grandes deste mundo, que não participa nas suas celebrações e não os lisonjeia, obter o mesmo que aqueles que fazem todas estas coisas?
Serás injusto e avarento, portanto, se não estás disposto a pagar o preço pelo qual estes favores são vendidos e queres recebê-los de graça. Qual é o preço de uma alface? Digamos que custa uma moeda. Ora, se alguém paga este preço e leva a sua alface, enquanto tu não o pagas e ficas sem ela, de modo nenhum foste enganado. Porque, tal como ele tem a alface, tu tens ainda a tua moeda, a qual não gastaste. Do mesmo modo, se não foste convidado para o banquete de uma pessoa, é porque não pagaste o preço que corresponde ao seu jantar. E ele vende-se por adulações e por reverências. Paga, pois, o preço, se isso te convém. Agora, se pretendes não pagar o preço e ainda assim receber os seus benefícios, nesse caso és um avarento e um imbecil. Julgas que, ao perderes esse banquete, não obténs nada em troca? Muito pelo contrário. Obténs o não ter elogiado a quem não queres elogiar e não teres tido que suportar os insultos que esse desgraçado dispensa àqueles que o visitam.»

EPICTETO, Enquiridion, 25

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