Apanhemos outro dos lugares comuns: “eu não preciso de mestres, aprende-se com a vida”. Como é uma das minhas ocupações andar a caçar espécimes antropológicos que pululam inconscientes no nosso século, mais uma vez tenho de tentar compreender o que realmente significa uma frase destas.
Mais uma vez a glória contestada seria a de uma sociedade cristã, medieval, Ancien Régime, ou quando muito burguesa, baseada no tão afamado patriarcado judaico-cristão. Estes lugares comuns já foram corridos em anteriores núpcias, por isso nem perco tempo com eles.
A questão é a de saber se é aqui que realmente se encontra o fundamento da necessidade de mestre.
Podíamos ir algo mais longe e lembrar que é sobretudo entre os animais mais inteligentes que existem períodos de aprendizagem guiados por um mestre (tipicamente os pais, mas podendo ser outros membros do grupo, como se passa com os elefantes ou os primatas). E que por isso mais uma vez o lugar comum mostra apenas uma nostalgia do nosso passado réptil, tanto quando o fascínio pelas iguanas, sáurios e rastejantes.
Poderá não ser injusto, mas é forçosamente incompleto.
É sempre algo arriscado generalizar, mas a verdade é que as grandes correntes de pensamento da antiguidade são escolas de vida. Em algumas existe uma perspectiva meramente técnica na aparência, como em algumas escolas retóricas e sofísticas, mas inequivocamente o projecto das escolas filosóficas é sempre mais que intelectual. São escolas de vida. Com mestres. Não se aprendem apenas conceitos e métodos. Aprende-se a viver. Um estóico quer viver de modo diverso de um cínico. Um platónico tem atitude de vida diversa de um epicurista.
O budismo estabelece-se igualmente como escola de vida, sobretudo na sua vertente mais antiga e próxima do original, a Theravada. Existe um mestre por excelência, o Buda. Com o confucionismo passa-se o mesmo. O guru hindu tem o mesmo papel. Epicteto, Epicuro, Pitágoras são outros bons exemplos disso. E com Cristo há algo mais que uma escola porque é toda uma vida que está presente como exemplo, e factos de uma vida, mas existe igualmente um mestre e uma palavra que é transmitida.
O cristianismo antigo conforma-se a partir do século II como uma escola e entre o século II e o V o movimento é em grande medida o da luta entre o professor, o teólogo, e o bispo pelo magistério. No século IV já não encontramos nem Tertulianos, nem Orígenes. E constroem-se não templos, mas basílicas, não tanto casas onde habita Deus, como o templo antigo, mas locais onde se reúnem pessoas, como as basílicas, locais de troca de experiências de vida por excelência, e igualmente de troca de bens e de ensinamentos. A igreja vê-se como uma escola e fala das outras correntes como heréticas, ou seja, seitas, escolas de pensamento diversas (o conceito de heresia é grego antes de cristão, apesar da marca que o cristianismo lhe deu).
Retenhamos algumas ideias principais. A ideia de escola e de mestre não é nem europeia, nem patriarcal, nem cristã, nem burguesa. A ideia de escola associa-se sempre a sociedades organizadas e tanto mais é desenvolvida quanto mais complexa é a sociedade. Existem mestres, existem escolas, aprende-se com pessoas. O lugar comum trai-se como mais uma forma de fascínio do primitivismo, como tantos outros na nossa época. É verdade, mas ainda insuficiente.
É evidente que se pode invocar o argumento de que a própria ideia de escola de vida fomenta o totalitarismo, e a falta de liberdade e sentido crítico. Não me parece. Aristóteles não era um submisso por estar na academia, a própria academia evolui para um pensamento bem diverso do de Platão, Pedro e Tiago tinham personalidades bem diversas e o cristianismo não se tornou um movimento estéril seja intelectual seja vivencialmente.
Quem ataca a existência de mestres e de escolas de vida lança o ataque a alvo errado e pelos motivos errados.
Hoje em dia passa por ridículo alguém pretender ser mestre da vida ou querer sequer ter um. Aprender, aprende-se com a vida, com as experiências.
Que está por detrás do lugar comum da fauna?
Nenhum ser humano sabe da vida, ou pelo menos é capaz de a ensinar. Não existe conhecimento sobre a vida. Aprende-se de forma impessoal com base em experiências e vivências. No fundo os seres humanos são tontinhos em compreensão ou em transmissão. O ser humano é impotente mais uma vez, para uma ou outra coisa ou para ambas.
A aprendizagem é impessoal no fundo. Se um ser humano nos dá ensinamento não é por o saber formular ou ter a capacidade de ensinamento, mas apenas porque nos serviu como espectáculo. O sorriso do selvagem numa savana ou o médico que salva vidas no meio de uma cidade pobre são dados como mestres da vida. Não pelo que ensinam ou sabem ensinar, mas pelo simples facto de se nos terem sido apresentados como espectáculo. Os acontecimentos ensinam-nos, as situações ensinam-nos, quando muitos os nossos estados mentais nos ensinam.
Na construção deste tipo de argumento existe um mundo composto de uma massa impessoal à nossa volta e dos nossos estados mentais. É um mundo despovoado, ermo, sem pessoas, que vê quem afirma tal coisa. Um mundo primitivo e réptil talvez. Mas sobretudo um mundo deserto, em que as pessoas nunca assumem o seu papel de pessoas, centros de vida autónomos.
Por isso quem afirma que não existem mestres nem escolas de vida julga falar em nome da liberdade, mas fala apenas a favor da estepe mongólica.
Vistos os fundamentos, quais são os efeitos? O aumento dos grupos sectários, de cursos de motivação, de educação sexual, seitas, procura de religiões exóticas. Tendo esvaziado da sua paisagem o ser humano e o ser humano próximo, procura-se o humano em todo o lado no longínquo, no estranho, no distante.
O tipo desta criatura é santo António, o do deserto e não o de Lisboa. As tentações perseguem-no, mas a finalidade desconhece-a. Por isso santo António é muito mais actual do que se julga. O fascínio, a proximidade que muitos sentem com o surrealismo da obra de Bosch não é superficial. A diferença é que Bosch e António tinham fito e obra, ambas faltando a quem estudamos.
A insatisfação – e a alegria alvar, que é a mesma coisa – que se retira destas soluções mostra apenas que quem criou o deserto à sua volta carece de tal forma de sociedade que até com formigas está disposto a associar-se. Torna-se por isso bem menos livre e mais seguidor que quem acusa de o ser. Entre a sua liberdade e a prisão de Aristóteles ou de São Pedro que cada um saiba melhor escolher.
Alexandre Brandão da Veiga