terça-feira, 14 de julho de 2009

II. Sinto muito, Nuno Lobo Antunes

Os textos são arriscados. Expor sentimentos, e sobretudo os próprios e sobretudo sentimentos positivos, cada passo neste processo é um novo grau de risco. O piroso, o lamecha, o tartufo assaltam a cada passo este tipo de discurso. E nisso o livro lembra muito Santo António, não o português e paduano, mas o antigo, com as suas tentações. Passar por riscos destes sem cair em nenhum destes escolhos é obra de artista ou de santo. Ou de ambos. Deixo a quem leia a escolha.

Significativo o papel da dor e do sofrimento no seu livro. Os intelectuais de pequeno calibre gostam muito de criticar o dolorismo do cristianismo. Julgando que há opção ideológica no que apenas é imensa lucidez sobre o ser humano. No cristianismo, como no autor, não há apologia da dor pela dor. Apenas reconhecimento que ela mostra caminhos, e é constitutiva da vida. Na velha fórmula católica: “pela dor, no amor”. Situações extremas revelam sempre. É essa uma das suas funções. Quem recusa o seu papel apenas mostra não gostar da lucidez.

E como pano de fundo, a comunhão dos santos. Não há vivos ou mortos, apenas pessoas. E pessoas que não são átomos, mas que comungam entre si. A comunhão dos santos, e em boa verdade, a noção de igreja, tem uma leitura biológica, ou melhor, antecipa-a, permitiu a sua formação. Sendo mais que células, cada um dos componentes faz parte do mesmo corpo e nesse sentido a comunhão gera um organismo pluricelular. A experiência científica e humana do autor (como distingui-las?) fá-lo apresentar um mundo em que essa comunhão está permanentemente presente. Antigos doentes que se revisitam, doentes que já morreram, outros que o deixaram de ser, outros que se encontram, vivos e mortos, não mudam de estatuto na sua vivência. Estão todos igualmente presentes. É precisamente por o tempo não ser uma ilusão que consolida o presente.

Não o posso evitar. Tenho de fazer a comparação. Não pode haver mais oposto que eu e o Nuno.

Ele é dotado para as ciências da vida e eu sou uma desgraça nelas (para minha vergonha). Ele respeita a abstracção matemática, mas não lhe toca e eu tomo banho nela. Em suma, eu sou mais Pitágoras e ele mais Teofrasto.

Por outro lado o Nuno é das pessoas mais cristãs que conheço sob o ponto de vista de teodiceia. Dá-se o caso de eu nessa matéria ser pagão. A minha gnose é cristã e a dele fica-se aquém dela. Não por objecção intelectual, nem por incapacidade, mas por obstáculo. O Nuno carrega a sua teodiceia cristã para uma mundividência moderna. E com isso vê em todo lado os efeitos do amor, sente a sua presença, respira-o em cada acto, mas, pudor moderno por excelência, não o pode ver incarnado. Seja. Há coisas bem piores. Ele verá o Céu bem mais depressa que eu, para minha alegria e seu embaraço.

Eu gosto de ouvir os seus silêncios e ele tem a rara paciência de ouvir alguns dos meus. A coisa tem nome, mas não o escrevo. Seja como for estou bem pronto à crítica, por ter falado demais de mim naquilo que deveria ser uma análise de uma obra alheia. Vivo bem com isso. A boa da experiência convenceu-me que toda a crítica séria é autobiográfica.


Alexandre Brandão da Veiga

http://geracaode60.blogspot.com/2007/07/i-chamfort-maximes-et-penses-caractres.html
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1 comentários:

joão wemans disse...

Belo e interessante comentário; fez-me lembrar um sermão que ouvi há pouco tempo, sobre o evangelho do Bom Ladrão. O padre concluia que a lição para cada um de nós é esta: passar de mau ladrão a bom ladrão, porque ladrões seremos sempre.