segunda-feira, 18 de maio de 2009

I. Riscos do Vaticano II


Já se glosou que bastasse o tema do papa e do preservativo. Curioso que quando se trata de teologia a única referência que venha à cabeça da modernidade seja a do látex. Não me importa o comentário pequeno, mas o que o move. Não a boca de cena, mas o seu pano de fundo.

Provavelmente boa parte dos termos em que decorreu a discussão tem a ver com os riscos do Vaticano II, o preço que se teve de pagar pelo concílio. Se em português conciliar tem uma dimensão de pacificação a verdade é que cada concílio teve os seus preços. Está no século, faz parte da vida humana, não é de estranhar.

Entendamo-nos: o Vaticano II teve aspectos bem positivos. Na perspectiva popular, o ritual da missa em vernáculo e os aspectos mediáticos são os que mais sobressaem. No que me respeita parece-me que os dois aspectos mais relevantes são outros: a revalorização da patrística e o ecumenismo.

A patrística desde meados do século XIX que vinha a ser revalorizada. E com razão. Esquecê-la é ignorar tesouros de sapiência e sobretudo de ambição (a teandria, por exemplo) que foram esquecidos por uma versão por vezes menos poética da escolástica. Associado a esta renovação está um novo assento para o ecumenismo. Sem a patrística, traço comum a católicos, ortodoxos orientais e protestantes, não seria possível fazer do ecumenismo mais que um rol de boas intenções, sérias porque experimentadas pelas guerras, mas inconsistentes sob o ponto de vista dogmático. Ecumenismo não é diálogo das religiões, é bem mais vasto que isso. É o passo para a efectiva união das igrejas. E o Vaticano II foi um momento particularmente importante neste percurso.

É verdade. Mas como nada aparece sem preço, dois perigos maiores surgiram do Vaticano II, dois malentendidos que este poderia gerar. A Igreja apresenta-se perante o século pronta a dialogar com ele. E desta disposição ao diálogo surgem dois malentendidos que a penhoram neste momento.

O primeiro malentendido nasce entre os católicos sobretudo. Vivendo na modernidade esperam e acabam por acreditar – que se entraria numa era da pastoral perfeita, ou seja, que a vida do dia a dia e a pastoral deixariam de viver em dissonância.

Quando isso não acontece o católico sente-se derrotado. Se perde o referendo sobre o aborto afirma que está em minoria, mesmo que todas as sondagens digam que é maioritário. Sempre que perde no século sente-se derrotado, menorizado. Porquê? Porque vive numa ilusão da pastoral perfeita.

Ora a verdade é que tal pastoral perfeita nunca existiu em época nenhuma. Basta ver a dissonância que sempre existiu entre a prática dos países cristãos e a pastoral. Em nenhuma época se pode indicar ausência de dissonância. É valido para o cristianismo e para todas as religiões. Mas em boa verdade para todas as mentalidades e as suas práticas. A Europa tem durante quase todo o segundo pós-guerra a esquerda como paradigma de legitimidade, como o centro sacerdotal, e no entanto vota à direita. O jornalista, o líder de opinião, o intelectual facilmente apoia ditaduras soviéticas, albanesas, chinesas, e no entanto a maioria da população vota em democratas-cristãos, conservadores ou liberais.

Que seja assim em todas as épocas é asserção que é conhecido até ao enfado. Mas o católico do Vaticano II, que assumiu o mito da pastoral perfeita, esqueceu-se desse dado de base. Que o budista faça guerra, o muçulmano persiga o cristão, o liberal retire liberdade ao trabalhador nunca espantou ninguém. Que o católico viva num mundo de pastoral imperfeitamente vivida custa-lhe mais que nunca.

1 comentários:

joão wemans disse...

André Frossard, convertido repentinamente ao entrar numa igreja dizia que o espírito do nosso tempo era: "Changer la règle pour être en règle". Não suportamos ser "sinais de contradição", e por isso cada vez mais, a velha Europa se vai tornando num Museu do Cristianismo.