segunda-feira, 20 de abril de 2009

Melancolia moderna


Os caminhos da modernidade levam-nos por uma contradição em que muitos se deleitam, por gostarem de se deixar arrastar pelas seduções da doce ilusão da felicidade efémera e, presumidamente, sempre reconstruível. Vivemos, contraditoriamente, de efémero em efémero numa compaixão de nós próprios que não nos deixa ver além dos sentidos: o mundo reduzido aos prestígios de engenharias sentimentais.
Dificilmente percebemos que nos enganamos a nós próprios, porque fazemos da vida um filme em que somos a personagem principal, sem termos a humildade de nos disponibilizarmos para os outros e, assim, para nos encontrarmos a nós mesmos. Vemo-nos de fora de nós sem nos fazermos outros de nós. Somos para nós próprios a imagem que fizemos de nós a partir de fora de nós. Sem centro nem reflexo, vagueamos incertos e insatisfeitos.
Não estamos, não somos, efectivamente presentes: derivamos sem destino, à espera, nem sabemos bem de quê, até que um dia descubramos que é tarde para recomeçar. Mesmo assim não será tarde demais, se tal dia de facto chegar. Até lá cheiramos as flores mas o seu aroma não se impregna no nosso ser profundo, envolto em teias de compromissos em que estamos ausentes e em que nos escondemos de nós próprios.
Admitimos que é uma condição do tempo, admitimos que não somos os únicos e o espírito da heroicidade não nos habita, nem sequer nos visita. Desistimos. Vamos procurar longe o que teimamos em não encontrar perto. Cegamos a nossa esperança a troco da possibilidade de viver vidas que não são a nossa. Não nos reconhecemos no palco do nosso teatro. E é como estrangeiros que presumimos que toda a nossa felicidade está lá ao fundo, nas nuvens que passam, como o estrangeiro de Baudelaire.
Transformamos tudo num jogo, num entretenimento, numa pretensão. Caímos no insuportável niilismo com justificações e discursos à cerca de nós próprios e do mundo em que vivemos mas que não construímos, nem conservamos. Contemplamo-nos e enchemo-nos de compaixão de nós próprios. Nada permanece para nós, em nada nos fixamos, tudo abandonamos. Insatisfeitos, insaciáveis, inconsequentes.


O Estrangeiro de Charles Baudelaire

— De quem gostas mais homem solitário? De teu pai, de tua mãe, de tua irmã, ou irmão?
— Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
— Dos teus amigos?
— É uma expressão de que não sei o sentido.
— Da tua pátria?
— Não sei onde está situada.
— Da Beleza?
— Amá-la-ia se a conhecesse, e a sua imortalidade.
— Do oiro?
— Odeio-o tanto como vós a Deus.
— Então que amas tu, singular estrangeiro?
— Amo as nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas nuvens!

3 comentários:

joão wemans disse...

Mais um belo texto poético para a minha antologia !

É como dizes.

Obrigado.


João W.

Manuel S. Fonseca disse...

"Mostra-ma a tua infância e a tua adolescência e dir-te-ei quem és", escreve Philippe Sollers na sua autobiografia. Mais adiante também ele cita o trecho de Baudelaire com que o João Luis conclui o seu post.
E as nuvens são uma das memórias da minha infância. Por baixo delas, nesse tempo, eu julgava, como Baudelaire, que "Le monde s'endort / Dans une chaude lumière". Com a certeza de que, para onde as nuvens iam, "Lá, tout n'est qu'ordre et beauté / Luxe, calme et volupté".

Rita GH disse...

Obrigada João Luís!
Estava mesmo a precisar de ler isto!
Rita GH

(vamos ver se é desta que consigo publicar o meu comentário...qual geração de 70!!)