Degustando Florença
Como ando em incumprimento reiterado das minhas obrigações "bloguisticas" resolvi fazer batota e economias de escala… Publico, igualmente, aqui uma boa parte de um post que acabo de publicar num novo blog sobre gastronomia (http://deguste-com.blogspot.com/).
Foi há quase quinze anos que abandonei Florença depois de cinco fantásticos anos de vida. Tenho continuado a visitar a cidade com frequência mas, preparando agora um regresso mais estável, voltei a visitar a cidade com um olhar diferente. Mais atento ao que mudou e ao que está na mesma. Na verdade: quase tudo está na mesma. A modernidade em Florença está sempre na forma como reinventa o seu passado. A cidade parece permanecer arrogantemente indiferente ao que muda à sua volta certa de que o seu fascínio sobrevive à sua apenas aparente decadência. Florença nunca aceitou "actualizar-se" e sempre entendeu que aquilo que na cidade não mudava era sempre o que de mais moderno o resto do mundo podia encontrar. Como se fosse o mundo que ainda tivesse muitos anos de atraso em relação a Florença. Para os florentinos o mundo ainda não atingiu a modernidade que se encontra no passado de Florença.Um dos melhores exemplos disso é a cozinha. Dos grandes restaurantes à mais simples trattoria dominam os grandes clássicos: ribollita, papa al pomodoro, faggioli al olio, bistecca, cogumelos porcini (cepes) em várias combinações. Pratos de uma cozinha pobre em cidade rica. Muda o refinamento dos produtos, alguns toques na execução e o cuidado na apresentação. Não se equivoquem, no entanto. Isto não deve ser confundido com inércia ou falta de curiosidade intelectual: vários chefes florentinos conhecem bem e até gostam da cozinha mais vanguardista mas não a praticam pois acham que a modernidade da cozinha florentina se encontra no seu passado. Quando inventam é apenas um pequeno retoque numa receita conhecida ou a redescoberta de um produto quase desaparecido. Abordam a sua cozinha com o mesmo respeito que merecem os monumentos da cidade: são restaurados e, quando muito, expostos de forma diferente. A inovação na cozinha florentina é fruto da arqueologia gastronómica e não da pura criatividade. Os grandes chefes florentinos são arqueólogos do gosto. Tal como com o resto da cultura e arquitectura florentina, são capazes de nos convencer que nada é mais moderno do que o seu passado.É por isso também que os grandes restaurantes florentinos permanecem os mesmos. Pouco muda no panorama da restauração de Florença. Um óptimo exemplo disto mesmo é o grande "clássico moderno" de Florença: Cibreo. Fez agora 30 anos. Criado por Fábio Pichi, "filho" dos revolucionários anos 60, que, provavelmente, o levaram a criar um restaurante que ainda hoje tem uma versão para ricos e uma versão para pobres. No restaurante e na trattoria comessem os mesmos pratos (com uma selecção mais pequena na segunda), apenas o serviço muda (não sendo, igualmente, possível reservar para a trattoria). Os preços também mudam: duas vezes mais caros no restaurante (impressiona ver os menus com os mesmos pratos lado a lado). Nos meus tempos de estudante em Florença o Cibreo já existia mas a versão pobre era mais ou menos clandestina (uma sala, nas traseiras da cozinha, em que se partilhavam as mesas). A trattoria pode assim ser considerada como um aburguesamento… Um local de classe média… Para além destes dois espaços, Fábio Pichi criou mais recentemente o Teatro del Sale. Trata-se de um clube (têm de se inscrever como sócios para poder entrar…) em que, por um lado, a cozinha é tratada como uma arte cénica e, por outro, como um local de encontro e socialização. A comida vai saindo, anunciada pela voz imponente do Fábio Pichi, de uma enorme cozinha aberta. Come-se em espaços comunais enquanto esperamos por algum espectáculo no palco.
Embora os espaços (e os preços…) variem, a comida de Pichi é substancialmente a mesma nos três locais: receitas (sobretudo florentinas) em grande parte quase desaparecidas que ele ajudou a recuperar e em que a cozinha pobre é dominante. Poucas ou nenhumas massas que é coisa pouca toscana. Os clássicos paté de fígados ou tripas à florentina para começar. Um extraordinário creme de pimentos (a melhor sopa que alguma vez comi) ou uma sopa de peixe como entradas. Um estufado de carne ou umas almôndegas como pratos principais. Uma torta de chocolate ou de laranja para terminar. Tudo pratos de uma aparentemente enorme simplicidade. E, no entanto, comemos e saímos com uma sensação de enorme requinte. Este é o segredo de Fabio Pichi: transformar uma refeição pobre de aldeia num banquete de luxo. E, no restaurante, paga-se o luxo: mais de 100 euros por cabeça. Já na trattoria pode ficar tudo à volta de 30 e no teatro del sale são 25 euros tudo incluindo (mais 8 ou 10 euros para a inscrição no clube).
É visível em Pichi uma certa concepção ideológica do acto de comer. Através das diferentes manifestações da sua cozinha ele socializa, redistribui, mobiliza. Para além de tudo isto, no entanto, está um chefe perfeccionista e fiel à tradição florentina de que não há nada mais moderno no mundo que o passado de Florença.
Foi há quase quinze anos que abandonei Florença depois de cinco fantásticos anos de vida. Tenho continuado a visitar a cidade com frequência mas, preparando agora um regresso mais estável, voltei a visitar a cidade com um olhar diferente. Mais atento ao que mudou e ao que está na mesma. Na verdade: quase tudo está na mesma. A modernidade em Florença está sempre na forma como reinventa o seu passado. A cidade parece permanecer arrogantemente indiferente ao que muda à sua volta certa de que o seu fascínio sobrevive à sua apenas aparente decadência. Florença nunca aceitou "actualizar-se" e sempre entendeu que aquilo que na cidade não mudava era sempre o que de mais moderno o resto do mundo podia encontrar. Como se fosse o mundo que ainda tivesse muitos anos de atraso em relação a Florença. Para os florentinos o mundo ainda não atingiu a modernidade que se encontra no passado de Florença.Um dos melhores exemplos disso é a cozinha. Dos grandes restaurantes à mais simples trattoria dominam os grandes clássicos: ribollita, papa al pomodoro, faggioli al olio, bistecca, cogumelos porcini (cepes) em várias combinações. Pratos de uma cozinha pobre em cidade rica. Muda o refinamento dos produtos, alguns toques na execução e o cuidado na apresentação. Não se equivoquem, no entanto. Isto não deve ser confundido com inércia ou falta de curiosidade intelectual: vários chefes florentinos conhecem bem e até gostam da cozinha mais vanguardista mas não a praticam pois acham que a modernidade da cozinha florentina se encontra no seu passado. Quando inventam é apenas um pequeno retoque numa receita conhecida ou a redescoberta de um produto quase desaparecido. Abordam a sua cozinha com o mesmo respeito que merecem os monumentos da cidade: são restaurados e, quando muito, expostos de forma diferente. A inovação na cozinha florentina é fruto da arqueologia gastronómica e não da pura criatividade. Os grandes chefes florentinos são arqueólogos do gosto. Tal como com o resto da cultura e arquitectura florentina, são capazes de nos convencer que nada é mais moderno do que o seu passado.É por isso também que os grandes restaurantes florentinos permanecem os mesmos. Pouco muda no panorama da restauração de Florença. Um óptimo exemplo disto mesmo é o grande "clássico moderno" de Florença: Cibreo. Fez agora 30 anos. Criado por Fábio Pichi, "filho" dos revolucionários anos 60, que, provavelmente, o levaram a criar um restaurante que ainda hoje tem uma versão para ricos e uma versão para pobres. No restaurante e na trattoria comessem os mesmos pratos (com uma selecção mais pequena na segunda), apenas o serviço muda (não sendo, igualmente, possível reservar para a trattoria). Os preços também mudam: duas vezes mais caros no restaurante (impressiona ver os menus com os mesmos pratos lado a lado). Nos meus tempos de estudante em Florença o Cibreo já existia mas a versão pobre era mais ou menos clandestina (uma sala, nas traseiras da cozinha, em que se partilhavam as mesas). A trattoria pode assim ser considerada como um aburguesamento… Um local de classe média… Para além destes dois espaços, Fábio Pichi criou mais recentemente o Teatro del Sale. Trata-se de um clube (têm de se inscrever como sócios para poder entrar…) em que, por um lado, a cozinha é tratada como uma arte cénica e, por outro, como um local de encontro e socialização. A comida vai saindo, anunciada pela voz imponente do Fábio Pichi, de uma enorme cozinha aberta. Come-se em espaços comunais enquanto esperamos por algum espectáculo no palco.
Embora os espaços (e os preços…) variem, a comida de Pichi é substancialmente a mesma nos três locais: receitas (sobretudo florentinas) em grande parte quase desaparecidas que ele ajudou a recuperar e em que a cozinha pobre é dominante. Poucas ou nenhumas massas que é coisa pouca toscana. Os clássicos paté de fígados ou tripas à florentina para começar. Um extraordinário creme de pimentos (a melhor sopa que alguma vez comi) ou uma sopa de peixe como entradas. Um estufado de carne ou umas almôndegas como pratos principais. Uma torta de chocolate ou de laranja para terminar. Tudo pratos de uma aparentemente enorme simplicidade. E, no entanto, comemos e saímos com uma sensação de enorme requinte. Este é o segredo de Fabio Pichi: transformar uma refeição pobre de aldeia num banquete de luxo. E, no restaurante, paga-se o luxo: mais de 100 euros por cabeça. Já na trattoria pode ficar tudo à volta de 30 e no teatro del sale são 25 euros tudo incluindo (mais 8 ou 10 euros para a inscrição no clube).
É visível em Pichi uma certa concepção ideológica do acto de comer. Através das diferentes manifestações da sua cozinha ele socializa, redistribui, mobiliza. Para além de tudo isto, no entanto, está um chefe perfeccionista e fiel à tradição florentina de que não há nada mais moderno no mundo que o passado de Florença.
3 comentários:
Post suculento.
Ao ler um post como este tem que se ficar a salivar...
Um abraço
Meu bom amigo, não há incumprimento nenhum, pois nenhum prazo da prestação foi estipulado...
Socorro-me do art. 777.º do CCiv.
"Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela."
Só lhe peço que não se exonere!
mesmo acabado de jantar, q saudades do cibreo. abraço
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