III. Apagamento e intensificação
É comum a intensificação ser vista como uma forma de cobardia, e muito mais heróica a aceitação quase estóica do apagamento. Tudo acaba, temos a coragem de o assumir. Mas a verdade é que tanto o apagamento como a intensificação suscitam medo. Não é mais corajoso quem aceita o apagamento. Pode-se mesmo dizer que a intensificação coloca bem maiores problemas, bem maiores medos.
Que sejamos finitos acaba no fundo por ser rotina. A vida ensina-nos que as coisas acabam. Que acabe de quem gostamos é doloroso, mas que nós acabemos mostra que esse sofrimento é também ele finito. Desemboca-se no comodismo. Muito mais assustadora é a intensificação. Estamos muito mais mal preparados para ser eternos que para acabar. E o tédio da infinitude, da eternidade, a admissão que estaremos sujeitos a uma nova experiência, muito mais radicalmente diferente de tudo o que o dia a dia nos afirma, requere afinal de contas muito mais coragem que dizer pura e simplesmente: depois, tudo acaba. Que bom. Que alívio.
O tédio, mas igualmente um outro medo. Estamos formados para associar a vida à tarefa. Que tarefa poderemos ter na eternidade? Que tipo de vida destituído de tarefa? Poderia existir? Por isso, quando se pensa nos últimos fins deparamo-nos com uma difícil escolha: ou nada fazer e ser esmagado pelo tédio ou em alternativa pelo torpor, ou ter tarefa, se infinita correndo nós o risco de ela ser superior às nossas forças, se finita desembocando depois do seu fim, afinal e mais uma vez, no tédio.
Toda a procura de fundamento é, ou incompleta, ou escatológica. Quando tentamos explicar um fenómeno natural, ou um fenómeno histórico, ou simplesmente as nossas motivações e comportamentos do dia a dia, terminamos sempre num fundamento que damos por final, mesmo que os seus fins tenham fronteiras difusas. Mas se paramos – e paramos sempre quando damos fundamentos – a honestidade obriga-nos a reconhecer que se poderia dar mais um passo. Perguntar mais um “porquê?”. As regras de bom-tom mandam-nos parar algures. É por razões funcionais que se pára. Mas quando se quer escavar o fundamento até ao fim, quando se deve efectivamente fazê-lo, quem pára apenas desiste. É por pudicícia que o faz. Parece mal, a nossa época não o admite. É de mau tom. Uma obscenidade.
Mas se pára quando deve avançar, ou está cansada, ou deixou-se corroer por um espírito pequeno burguês, em que as aparências são bem mais importantes que a glória. Parece mal, logo, não se faz. O pequeno burguês parasitou o que seria medida de contenção proba, a suspensão do juízo, e corroeu o que cheire a infinito. Não há pessoas providenciais nem superiores, não há fins últimos, não há absoluto. Temos no caminho do fundamento de nos deparar com um muro. Senão – parece mal. Partir o muro, ter coragem de ver mais longe, ousadia de mau gosto para árbitros da arte recém-promovidos.
Mas e se ir mais longe fosse afinal a única forma de andar? E se partir muros fosse libertação? O cultor do apagamento puro e simples não é corajoso afinal. Apenas pretende encontrar um muro onde se encoste e possa nele encontrar a soalheira tarde à espera de uma sombra que o obnubile.
Alexandre Brandão da Veiga
Que sejamos finitos acaba no fundo por ser rotina. A vida ensina-nos que as coisas acabam. Que acabe de quem gostamos é doloroso, mas que nós acabemos mostra que esse sofrimento é também ele finito. Desemboca-se no comodismo. Muito mais assustadora é a intensificação. Estamos muito mais mal preparados para ser eternos que para acabar. E o tédio da infinitude, da eternidade, a admissão que estaremos sujeitos a uma nova experiência, muito mais radicalmente diferente de tudo o que o dia a dia nos afirma, requere afinal de contas muito mais coragem que dizer pura e simplesmente: depois, tudo acaba. Que bom. Que alívio.
O tédio, mas igualmente um outro medo. Estamos formados para associar a vida à tarefa. Que tarefa poderemos ter na eternidade? Que tipo de vida destituído de tarefa? Poderia existir? Por isso, quando se pensa nos últimos fins deparamo-nos com uma difícil escolha: ou nada fazer e ser esmagado pelo tédio ou em alternativa pelo torpor, ou ter tarefa, se infinita correndo nós o risco de ela ser superior às nossas forças, se finita desembocando depois do seu fim, afinal e mais uma vez, no tédio.
Toda a procura de fundamento é, ou incompleta, ou escatológica. Quando tentamos explicar um fenómeno natural, ou um fenómeno histórico, ou simplesmente as nossas motivações e comportamentos do dia a dia, terminamos sempre num fundamento que damos por final, mesmo que os seus fins tenham fronteiras difusas. Mas se paramos – e paramos sempre quando damos fundamentos – a honestidade obriga-nos a reconhecer que se poderia dar mais um passo. Perguntar mais um “porquê?”. As regras de bom-tom mandam-nos parar algures. É por razões funcionais que se pára. Mas quando se quer escavar o fundamento até ao fim, quando se deve efectivamente fazê-lo, quem pára apenas desiste. É por pudicícia que o faz. Parece mal, a nossa época não o admite. É de mau tom. Uma obscenidade.
Mas se pára quando deve avançar, ou está cansada, ou deixou-se corroer por um espírito pequeno burguês, em que as aparências são bem mais importantes que a glória. Parece mal, logo, não se faz. O pequeno burguês parasitou o que seria medida de contenção proba, a suspensão do juízo, e corroeu o que cheire a infinito. Não há pessoas providenciais nem superiores, não há fins últimos, não há absoluto. Temos no caminho do fundamento de nos deparar com um muro. Senão – parece mal. Partir o muro, ter coragem de ver mais longe, ousadia de mau gosto para árbitros da arte recém-promovidos.
Mas e se ir mais longe fosse afinal a única forma de andar? E se partir muros fosse libertação? O cultor do apagamento puro e simples não é corajoso afinal. Apenas pretende encontrar um muro onde se encoste e possa nele encontrar a soalheira tarde à espera de uma sombra que o obnubile.
Alexandre Brandão da Veiga
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