quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Sentença de surdez


Não sei se alguns companheiros geracionais partilham esta paixão, mas David Lodge era o meu romancista contemporâneo favorito. A utilização do passado não significa que ele tenha morrido: está bem vivo e publicou em 2008 mais um romance, "Deaf sentence".

Descobri David Lodge em Inglaterra. Eu fazia o doutoramento em Warwick, e comecei pela brilhante trilogia "Changing places - small world - nice work". E fui por aí fora: para trás (The British Museum is falling down, How far can you go?) e aguardando ansiosamente o próximo livro (Therapy, Paradise News, Thinks).

É difícil dizer o que me atrai mais em David Lodge. Talvez a forma ligeira mas profunda com que aborda problemas sociais. Talvez a forma um pouco estranha como constrói situações à partida improváveis mas que acabam por ser quase inevitáveis. Talvez a bonomia e o sentido de humor que levam a tiradas absolutamente hilariantes a propósito de assuntos sérios.

Nunca tive dúvidas de que os seus romances tinham fortíssimas componentes autobiográficas. Em Changing Places ele claramente descreve a sua sabática de troca de posições académicas com um professor de Berkeley (no livro Euphoric State University - estamos no final dos 60s). Em Nice Work a relação do mundo académico com o mundo do trabalho thatcheriano. Em The British Museum is falling down, o seu próprio debate moral (um jovem que está a acabar o PhD) com a pílula, no início dos anos 60. Em Therapy, as suas experiências com a psicanálise. Em Paradise News, viagens de férias em grupo organizado, tão à inglesa. Em Thinks, as relações entre o mundo das letras e das ciências cognitivas.

Para mim, isto era mais um incentivo aos seus livros. "Deixa cá ver o que ele esteve a fazer agora!". O traço mais marcante era a forma como ele descrevia situações semelhantes sem dúvida a outras por que tinha passado e construía um plot interessantíssimo e com um sentido de humor excepcionais. Com todos os livros dele dei por mim a rir alto.

Apareceu agora este "Deaf Sentence". Num posfácio Lodge admite que o livro tem componentes autobiográficas: a sua luta com a surdez, a perda do pai, uma visita quase falhada a Auschwitz.

Para um fã incondicional, o livro é uma tremenda desilusão.

David Lodge não perdeu o instinto de criar situações intrigantes e aparentemente improváveis. Mas onde antes era leve, agora é pesado. Onde mostrava um humor subtil e hilariante, agora é azedo e amargo. Onde mostrava saber rir de si próprio e tinha prazer em partilhar com os outros esse riso, agora é apenas descritivo e tenso.

Amargura, azedume, tensão. Acho que David Lodge perdeu a capacidade de rir de si próprio, de olhar com leveza para os seus próprios problemas. Infelizmente já não vou estar sempre à espera de ver quando sai o seu próximo livro.


4 comentários:

Sofia Rocha disse...

Jorge, está tudo muito certo, com que então doutoramento, hem?

Anónimo disse...

Jorge, estou totalmente de acordo. O David Lodge parece ter envelhecido com desalento e nos livros dele há agora uma sensação de catástrofe inevitável. Já leu Alexander McCall Smith? The Finer Points of Sausage Dogs (Portuguese Irregular Verbs) e The 21/2 Pillars of Wisdom são dois livros sobre o mundo académico, absurdos e hilariantes.

magnuspetrus disse...

Suspeito que já em Author, Author se anunciava a falta de humor deste último livro, contrapondo, assim, a principal virtude que o tornou famoso.
Em última análise Lodge deixou de estar preparado para o mundo e nós para o recebermos...

Jorge Buescu disse...

Muito obrigado pelos comentários. Sofia, vou já tratar de "conhecer" o Alexander NcCall Smith!