Um bom começo
Um bom começo ou um mau fim?
“Todas as famílias felizes são iguais. Cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Se eu fosse autor destas duas frases, a minha crónica terminaria aqui. Mas não, não sou. A feliz conjugação saíu armada e imortal da imaginação de um russo, anárquico e prodigioso. É assim que começa “Anna Karenina”, um dos romances maiores (são todos) de Leão Tolstoi. Parafraseando o que em tempos disseram os nossos Correios, numa campanha ganhadora aliás, começar bem é meio caminho andado.
Há, na história da literatura, alguns começos extraordinários. D. H. Lawrence abria o seu controverso “O Amante de Lady Chatterley” com uma frase severa: “A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a levá-la a sério”. O livro encabeçado por esta frase, relatando no miolo a fusão tórrida de um guarda florestal com uma aristocrata, foi levado tão a sério que, publicado pela primeira vez, em 1928, na católica Florença, só em 1960 teve impressão autorizada no liberal Reino Unido. Claro que o facto da dita fusão ser, na prosa de Lawrence, reduzida a uma palavra inglesa com quatro letras explica em parte a trágica proibição.
Nas leituras adolescentes, um dos começos que mais me impressionou foi o da “Reivindicação do Conde Julião”, romance assinado por Juan Goytisolo. Em minúsculas – o estilo é o homem – Goytisolo punha na boca do seu narrador, que do alto de uma colina em Tânger se dirigia à Espanha de Franco, esta amargura anti-patriótica: “terra ingrata, espúria e mesquinha entre todas, jamais voltarei a ti”. À direita e à esquerda, poucos lhe pouparam a traição delirante que a invectiva supunha. A mim, esta maldição forçou-me a devorar cada página. Duma vez por todas, passei a corar sempre que lia a palavra patriotismo.
“Conheci-a há oito anos. Era minha aluna”. Esta é, para mim, a melhor abertura de um romance de Philip Roth. “O Animal Moribundo”, um belo romance, não será o melhor do escritor. Mas o arranque anuncia uma glorificação do sexo que, à medida que viramos as páginas, nos leva a crer que a “verdade do orgasmo” talvez seja a única verdade capaz de suspender a morte. Ou precipitá-la?
O meu romance português preferido, “El-Rei Junot”, que Raúl Brandão escreveu em 1912, tem um arranque que rima com o tema pungente da invasão francesa: “A história é dor, a verdadeira história é a dos gritos”. Mais do que um romance histórico, “Junot” é o trabalho de um artista que pinta a tragédia humana com uma combinação improvável de farsa, grotesco, comicidade e metafísica.
Não sei se acabe com Jane Austen ou com James Joyce. No mais ilegível dos seus romances, “Finnegans Wake”, a primeira frase do irlandês contem todos os mistérios do mundo: “riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay...”, o que em português tentativamente dá “riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía...”. E poucas vezes a escrita terá fluído como este rio, ancestral e a abrir-se sobre o mar, de sibilante para redonda e doce aliteração (“from swerve of shore to bend of bay”).
Mas para acabar, acabar, escolho a epítome do amor romântico que é “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen. “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma boa fortuna deve estar à procura de uma esposa.” Porque é que nada neste nosso mundo é já tão seguro e certo como os padrões desse velho mundo em que tudo era reconhecimento e segurança?
10 comentários:
Um belíssimo texto. Mas tem um erro ortográfico. Raul não leva acento. Já dizia o padre Raul Machado, nas suas Charlas Linguísticas, na RTP, nos anos 60: "Por favor, não me ponham acento no Raul". Se o padre Raul Machado dizia que não leva acento - não leva, ponto final. Não me venham com prontuários.
Meu caro Manuel
Escrevo só para gabar a cultura, louvar a elegância e enaltecer a graça com que todos os teus posts - e também este - aparecem neste - e noutro - blog. Ainda para mais, combinando tudo isto com uma irreverência que, passando embora alguns limites (!), não sendo nunca gratuita, é aceitável. É obra.
Agora, posto isto, pergunto: o que é que se passa naquela imagem? O que está a menina a fazer ao ganso? O que está o ganso a fazer à menina? Aquilo é guerra ou é amor? E se é amor, é inexperiente ou já fruto de experiência a mais? Francamnente, fiquei curioso.
Um abraço. :)
Gonçalo
Julgo, estimado(a) anónimo(a), que mesmo os prontuários lhe darão razão, ainda que haja pelo menos uma edição de Raul Brandão em que o nome vem grafado com acento na capa. Mas erro é erro e dou a mão à anónima palmatória. O “u” seguido de “l” final não precisa de acento para evitar o hiato com a vogal anterior. É essa a regra que se aplica às palavras agudas (oxítonas), como é o caso. Ainda tentei descobrir um antepassado espanhol ao autor em causa, o que já me justificaria um ibérico acento. Nada, descobri-lhe apenas ligação nefelibata, gramaticalmente irrelevante.
O meu estimado amigo Manuel S. Fonseca conhece a gramática - ou terá uma de bom autor à mão, o que vem a dar no mesmo. Desconfio que andou pelas Línguas e Literaturas... Eu sou de outro campeonato e - confesso - de gramática não sei tanto. A gramática é para mim como o automóvel: sirvo-me dela no dia-a-dia sem lhe conhecer a mecânica a fundo. Aprendi com as leituras e com o que ouvi aos mais avisados mestres. Pedi-lhe no post anterior que não viesse com prontuários por uma razão de peso e monta: ainda outro dia, uma jovem de geração mais serôdia arremessou-me com um descuidado prontuário de conhecida autora para provar que bênção não podia levar acento circunflexo - porque a nossa Língua não consente palavras duplamente acentuadas. Não me leve a mal.
Manuel,
Fantástico texto. Junto apenas o meu início favorito
É do L'Etranger de Camus (Cito de memória pois estou longe de casa e de poder aceder ao livro):
"Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não me recordo…"
Miguel
Manuel, li-o e só agora lhe podia responder,ía dizer que me parecia que o Manel estaria dissimuladamente a tentar-nos para que cada um começasse a recitar começos favoritos.
A leitura do comentário do Miguel dá-me razão.
O Manel e os seus desígnios. Não posso deixar passar Macondo e a tarde em que vê o gelo pela primeira vez. Na juventude é de belo efeito.
Quanto ao ganso, nunca vi um bicho ser depenado com tanta graça.
Vi depenar muitas galinhas, mas nunca, nunca, em tal preparo..
Gonçalo, já para não falar do mito de Leda e o cisne, experimente só fechar os olhos e seguir o poético conselho:
"Olhos se fechem não para não ver / mas para o corpo ver o que eles não, / e no silêncio se ouça o só ranger / da carne que é da carne a só razão". Talvez isto lhe diga o que não sabemos se é a menina que faz ao cisne ou se é o cisne que faz à menina.
Mas a pista da Sofia e dos seus preparos não é nada negligenciável.
Obrigado Miguel pela sua incurável gentileza e pela contundente abertura camusiana.
O meu início favorito: "Rita afastou o lençol, saltou da cama e correu para o duche". Não me consigo lembrar da obra nem do nome do autor.
Só agora entendo, pela magnífica ilustração do post, o significado da expressão popular "afagar o ganso".
Dada a notória popularidade grangeada pela imagem que ilustra este post, é de elementar justiça dizer que se trata de uma pintura de Geneviève Van Der Wielen, artista belga, nascida em 1954. Aqui está o seu endereço na rede: http://www.gvdw.be/home.htm
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