segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O berro e a gestão

Em Portugal já vi muita gente gerir ao berro. Como ao longo da minha vida nunca precisei de dar um único berro para disciplinar ninguém (nem aliás de dar uma ordem) a figura sempre me foi misteriosa.

Um tio meu sempre disse: “quem berra só fala dos pais”. É verdade. Pais horrorosos, mal-educados, que não souberam dar educação. Quem berra enquanto gere apenas diz: “os meus pais são horrorosos e não me souberam dar educação”. É a única coisa que eu consigo perceber quando ouço alguém a dar berros.

A origem é evidentemente social porque vieram directamente de palheiros para o poder hordas de plebeus mal assimilados pela civilização. Convenhamos: o problema não é o de onde a canalha veio, mas de onde nunca saiu. Apenas dourou as chapas dos carros e dos cartões de crédito.

A origem social explica a reacção e os modos. Mas não descreve na íntegra o mundo do que berra. Que sente essa criatura quando berra? Sente-se perdido. Não está segura. E porque não está segura? Porque ninguém lhe ensinou a exercer cargos de poder. E só em casa essa arte se encontra disponível de forma eficaz.

Sente-se insegura igualmente porque tecnicamente não domina as matérias. Para mostrar que a sua opinião tem volume, é o volume da voz que tem de aumentar. O volume que a sua voz tem compensa o pouco volume do que pensa.

No fundo mais não é que um animal acossado pelo exercício do poder. Encontra-se fora da lei porque se julga acima dela. Ou seja: não a sabe encarnar.

Platão nas “Leis”, Nietzsche no “Zaratustra” e uma longa tradição do pensamento europeu mostram como a dança é acto teológico por natureza. O Congresso de Viena pode ser por muitos considerado ridículo. Muita valsa se dançou. Mas manteve um continente em permanente ebulição numa paz relativa durante um século, dentro dos limites que a própria ideia de nacionalidade, tão injusta quanto perigosa muitas vezes, permitiu.

Pessoas que não sabem dançar, ou seja, não se sabem mover, compensam com o grito o que o pequeno gesto poderia transmitir.

Mas o berro é doença cíclica, como as antigas febres terçãs e quartãs. O detentor de poder que berra lembra-se por vezes de se resguardar na sua contenção. Vem-lhe à memória que é preciso ter alguma dignidade e um senhor e uma senhora não berram. E como mal ou bem mais não anseiam – não lhes basta à alma o cartão dourado – quando vão sendo promovidos aprimoram a gravata ou passam a usar colares de pérolas como as senhoras fazem. “É clássico”, esquecendo que a mera imitação desenquadrada é apenas ridícula.

Uma amiga minha belga, vinda de uma muito antiga família alemã, era das pessoas mais descontraídas que conheci. Uma conhecida nossa italiana, que se vestia de Armani de cima baixo para imitar a montra na íntegra, estava sempre contida, perna cruzada em posição hirta. Uma dia ela disse-me: “Sabes porque a G. não descruza as pernas?”. Não, respondi-lhe eu. “Porque tem medo que saia traque”.

A pobre criatura que berra por vocação, quando se contém, é pois flatulência que guarda na alma. O que de mais fundo produz anda-lhe pelas tripas. É natural que por isso não se possa conter por muito tempo.

O retrato está pois completo. Que faz quem, gerindo, berra? Diz que os pais são horrorosos e não lhe souberam dar educação. Palavra justa, vista nessa perspectiva. O cartão dourado não satisfaz enquanto não passa à pérola, o que é desenquadrado. E, quando se contém, é metano que se lhe introduz nas entranhas. Triste raça que para se expressar lança ao mundo o que de melhor tem. Não deixará rasto. Apenas cheiro.








Alexandre Brandão da Veiga

3 comentários:

Anónimo disse...

(agora em surdina) o que é que isto tem a ver com o Editorial deste blogue?

Vasco M. Grilo disse...

Caro Alexandre,

Permita-me que lhe recorde que de muito boas e antigas famílias saíram muitos dos oficiais das SS na Alemanha dos anos 30. Aparentemente deixaram de se sentir assimilados pela civilização e berrando abriram caminho através da civilização dos outros deixando atrás de si um rasto de destruição e morte. E cheiro. Muito mau cheiro.

Como gestor, não uso o berro nem a ordem intimidatória. Não acredito que o trabalho que faço resulte mais eficaz e útil gritando com as pessoas que colaboram comigo. Tenho igualmente horror aos barulhentos novos ricos dos nossos dias. No entanto vai-me desculpar mas embora eloquente e divertido, o tipo de generalização que aqui faz e’ demasiado simples. Conheco muita gente de origem humilde e plebeia mas de uma educação e de uma cultura que sendo por certo popular se revela elegante, rica e fascinante. Conheco tambem (muitos) meninos e meninas de boas e respeitáveis famílias Portuguesas e estrangeiras, educados no maior dos preceitos, que se comportam regularmente de forma inqualificável, desrespeitando tudo e todos. E berram. Muito alto.

O problema Alexandre, não são os que levantam a voz porque não sabem melhor. O problema são aqueles que sabendo tudo não a levantam, particularmente nos momentos em que um berro alto, forte e corajoso e’ necessário para chamar todos de volta à civilização.

Um abraco,
Vasco Marçal Grilo

Redonda disse...

CARROÇA VAZIA

Certa manhã, meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no
bosque e eu aceitei com prazer. Ele se deteve numa clareira e depois de um pequeno silêncio me perguntou:

- Além do cantar dos pássaros, você esta ouvindo mais alguma coisa ?

Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi:

- Estou ouvindo um barulho de carroça.

- Isso mesmo, disse meu pai, é uma carroça vazia.

Perguntei ao meu pai:

- Como pode saber que a carroça esta vazia, se ainda não a vimos ?

Ora, respondeu meu pai. É muito fácil saber que uma carroça esta vazia
por causa do barulho. Quanto mais vazia a carroça maior é o barulho
que faz.

Tornei-me adulto, e até hoje, quando vejo uma pessoa falando demais, gritando (no sentido de intimidar), tratando o próximo com grossura inoportuna, prepotente, interrompendo a conversa de todo mundo e, querendo demonstrar que é a dona da razão e da verdade absoluta, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai dizendo: 'Quanto mais vazia a
carroça, mais barulho ela faz...'

Autor desconhecido.