Chinesices da crise
No meio dos comentadores económicos e políticos surgiu mais um lugar comum. Sinólogos feitos à pressa lembram-nos que o ideograma chinês para crise significa risco e oportunidade. Seja, mas depois de ser dito isto, esperamos que saia qualquer desenvolvimento mais das suas cabeças.
Nada. Era tudo o que tinham para dizer. Depois de o dizerem concluem com um sorriso cúmplice e alvar. Nada mais. Um pouco como a Roxane do Cyrano de Bergerac quando o cavaleiro se lhe declara. Ele diz: amo-vos. Ao que ela responde: esse é um bom começo. E...? Ao que ele continua: Amo-vos muito. Ao que ela aquiesce dizendo. É uma boa continuação... E?
E mais nada. Não tem mais nada a dizer. O sinólogo revela-se apenas salteador de curiosidades alheias. Traz consigo um saque que roubou na estrada, mas está como o Neandertal que tivesse roubado um telemóvel. Está contente com o furto em si, mas desconhece a utilidade do conceito.
Sendo “crise” uma palavra de origem grega lá vou eu ao meu Bailly ver o que ele me pode ensinar. Consoante as épocas e os contextos “krisis” em grego significa: acção ou faculdade de distinguir, de escolher, escolha, decisão, contestação, luta, processo acusação, acção de decidir, julgamento (sobre uma questão, uma dúvida) condenação, fase decisiva de uma doença, explicação, interpretação de um sonho.
A crise na acepção que agora usamos surge de um conceito que significava primeiro destrinça, a este se segue um julgamento, e só assume a natureza algo preocupada que lhe conhecemos porque na medicina se começa a falar em fases decisivas de uma doença, os momentos decisivos, críticos, a crise. Enriquecido o conceito pelo seu uso médico, foi este em grande medida que herdámos. Mas o conceito de crise pela via europeia que recebemos já incorpora o que de humano se tem de fazer perante ela: distinguir, cuidar, decidir, interpretar, lutar, agir.
Não preciso de uma sabedoria chinesa de importação para perceber que a palavra crise é tudo menos simplista, depressiva ou impedimento à acção e à destrinça. Quem desde criança conviveu com móveis e adereços chineses antigos, digamos assim os “verdadeiros”, não se fascina com o plástico a imitar marfim, ou o candeeiro em estilo chinês “pimba”. Só precisa de recorrer a uma sabedoria chinesa de baixa importação quem desconhece o original chinês, mas sobretudo quem desconhece a sua própria cultura.
A estratégia é conhecida. A Europa já se sabe que não tem cultura nenhuma, é fora dela que temos de ir buscar referências de sabedoria. Problema de formulação, porque o drama está no sujeito. Não é a Europa que não tem cultura nenhuma, mas muitos europeus quem, tendo-lhes sido conferido um título académicos, se sentiram isentos de ter de pensar.
Este é um entre muitos exemplos da fraude que impera no espaço público. Antevejo a objecção, no entanto: porque razão teria de ser especialista em sinologia o comentador? Sem dúvida. Mas nesse caso que não a cite. Se na casa dele nunca se pensou o que a crise significa é um problema da casa dele. Em boa verdade o que ele está a dizer é o seguinte: “na minha casa nunca soubemos o que era crise, e foi preciso uma chinesice para lhe dar espessura”. Confissão triste, mas evitável, e que todos agradecíamos que não nos visse parar aos ouvidos. Que se lembre que do mundo de onde vem nem todos tiveram ocupação secular de cuidar de batatas e que nem toda a espessura é puré.
Alexandre Brandão da Veiga
Nada. Era tudo o que tinham para dizer. Depois de o dizerem concluem com um sorriso cúmplice e alvar. Nada mais. Um pouco como a Roxane do Cyrano de Bergerac quando o cavaleiro se lhe declara. Ele diz: amo-vos. Ao que ela responde: esse é um bom começo. E...? Ao que ele continua: Amo-vos muito. Ao que ela aquiesce dizendo. É uma boa continuação... E?
E mais nada. Não tem mais nada a dizer. O sinólogo revela-se apenas salteador de curiosidades alheias. Traz consigo um saque que roubou na estrada, mas está como o Neandertal que tivesse roubado um telemóvel. Está contente com o furto em si, mas desconhece a utilidade do conceito.
Sendo “crise” uma palavra de origem grega lá vou eu ao meu Bailly ver o que ele me pode ensinar. Consoante as épocas e os contextos “krisis” em grego significa: acção ou faculdade de distinguir, de escolher, escolha, decisão, contestação, luta, processo acusação, acção de decidir, julgamento (sobre uma questão, uma dúvida) condenação, fase decisiva de uma doença, explicação, interpretação de um sonho.
A crise na acepção que agora usamos surge de um conceito que significava primeiro destrinça, a este se segue um julgamento, e só assume a natureza algo preocupada que lhe conhecemos porque na medicina se começa a falar em fases decisivas de uma doença, os momentos decisivos, críticos, a crise. Enriquecido o conceito pelo seu uso médico, foi este em grande medida que herdámos. Mas o conceito de crise pela via europeia que recebemos já incorpora o que de humano se tem de fazer perante ela: distinguir, cuidar, decidir, interpretar, lutar, agir.
Não preciso de uma sabedoria chinesa de importação para perceber que a palavra crise é tudo menos simplista, depressiva ou impedimento à acção e à destrinça. Quem desde criança conviveu com móveis e adereços chineses antigos, digamos assim os “verdadeiros”, não se fascina com o plástico a imitar marfim, ou o candeeiro em estilo chinês “pimba”. Só precisa de recorrer a uma sabedoria chinesa de baixa importação quem desconhece o original chinês, mas sobretudo quem desconhece a sua própria cultura.
A estratégia é conhecida. A Europa já se sabe que não tem cultura nenhuma, é fora dela que temos de ir buscar referências de sabedoria. Problema de formulação, porque o drama está no sujeito. Não é a Europa que não tem cultura nenhuma, mas muitos europeus quem, tendo-lhes sido conferido um título académicos, se sentiram isentos de ter de pensar.
Este é um entre muitos exemplos da fraude que impera no espaço público. Antevejo a objecção, no entanto: porque razão teria de ser especialista em sinologia o comentador? Sem dúvida. Mas nesse caso que não a cite. Se na casa dele nunca se pensou o que a crise significa é um problema da casa dele. Em boa verdade o que ele está a dizer é o seguinte: “na minha casa nunca soubemos o que era crise, e foi preciso uma chinesice para lhe dar espessura”. Confissão triste, mas evitável, e que todos agradecíamos que não nos visse parar aos ouvidos. Que se lembre que do mundo de onde vem nem todos tiveram ocupação secular de cuidar de batatas e que nem toda a espessura é puré.
Alexandre Brandão da Veiga
1 comentários:
Pensar demora o seu tempo.
O pensamento move-se de lado, como uma cobra.
Quando se chega a algum lado, o momentum passou.
O pensamento é desfazamento.
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