IV. Islão e cristianismo
Em quarto lugar a relação com o texto sagrado. O Islão fala árabe no alcorão. Ponto final. É evidente que houve polémicas históricas que se perguntavam se o texto do alcorão era criado ou incriado (em evidente transposição de idênticas questões tratadas em sede cristológica). Mas o corão foi escrito em árabe e a língua sagrada do Islão é o árabe. No paraíso fala-se árabe. Mais, a tese tradicional é a de que o árabe mais puro é o escrito no corão.
O paradigma cristão é bem diverso. Cristo falaria arameu. Mas não em lembro de autor que dissesse que o arameu seria a língua sagrada do paraíso. Seria mais depressa o hebreu, língua do Antigo Testamento. Mas entra uma terceira língua em jogo. O grego. O Novo Testamento é-nos dado em grego. Ora nunca ninguém aceitou sequer que a palavra literal de Cristo seria grega. Mas eis que entra uma quarta língua em jogo: o latim. O cristianismo latino vive da vulgata de São Jerónimo escrita em latim. Uma tradução sobre uma tradução. As palavras de Deus não são lidas na sua versão literal original.
Não menos grave que isto. Estando escrito em grego o novo testamento ninguém algum dia se atreveu a dizer que eram o paradigma do mais puro grego. A prosa platónica e as poesias épicas eram bem mais consideradas paradigmas do bem escrever. Bem pelo contrário, constrangeu alguns dos padres da Igreja o que sabiam ser um grego menos elegante. E depois entram outras línguas em jogo. O alemão de Lutero. O inglês do rei Jaime. O checo, o francês, e tantas outras traduções da bíblia tornam-se canónicas. Por isso quando um cristão se cola à letra, algo de estreiteza teológica e inépcia filológica se passa na sua cabeça. O fundamentalista americano cita a palavra de Deus em inglês como boa. Como se Cristo tivesse falado em inglês.
A relação do cristão com a palavra divina corre por isso menos risco de cair no fetichismo. O livro sagrado é tradução. Sempre. Seja em versão grega, por maioria de razão latina, em eslavão antigo, russo, inglês, alemão, ou checo. Ninguém pode dizer que Deus se pronunciou em aoristo grego e menos ainda que foi por essa Sua expressão que se formou o epítome da língua grega. A letra é tradução. Por isso carece da mediação do concílio.
O passeio que fiz foi rápido e sumário. Mas cada espaço na Europa nos lembra (ou lembra quem não é cego) da infinitamente maior riqueza da cultura cristã. Não há um Beethoven Persa, um Bach marroquino, um Miguel Ângelo cairota, um Dante turco, um Gauss líbio, um Leibniz argelino. Não há nem nunca houve. O Islão foi sobretudo cultura de transmissão, mais que de criação infinita. O que já não é mau, mas é bem diverso da Europa.
Em época em que o discurso amansador da fera externa (porque é quem tem discurso amansador que vê o estrangeiro como fera, não o vendo eu dessa maneira não careço dele) nos manda dizer maravilhas de tudo o que existe só porque anda postado na praça, convém lembrar aos europeus a infinita riqueza da sua cultura, maior que alguma vez na História se viu. E que fonte dessa riqueza é o cristianismo por vias tão estranhas e ao mesmo tempo tão simples e evidentes, que escapam à maioria.
Toda a cultura tem base religiosa. Só o anestesista e a assepsia podem achar o contrário. Lembrar quais são as diferenças é a primeira base para o diálogo, diz-se. Mas não sou cultor da conversa desdentada, e diálogo é algo que se deve ter, senão entre iguais pelo menos entre comparáveis. Gostaria de lembrar que a primeira regra do diálogo é a de se perceberem as diferenças. De tanto se fictarem semelhanças acabamos por ter em comum apenas respirar e defecar. O que em si não é mau, mas cheira-me a pouco... e mal.
Alexandre Brandão da Veiga
O paradigma cristão é bem diverso. Cristo falaria arameu. Mas não em lembro de autor que dissesse que o arameu seria a língua sagrada do paraíso. Seria mais depressa o hebreu, língua do Antigo Testamento. Mas entra uma terceira língua em jogo. O grego. O Novo Testamento é-nos dado em grego. Ora nunca ninguém aceitou sequer que a palavra literal de Cristo seria grega. Mas eis que entra uma quarta língua em jogo: o latim. O cristianismo latino vive da vulgata de São Jerónimo escrita em latim. Uma tradução sobre uma tradução. As palavras de Deus não são lidas na sua versão literal original.
Não menos grave que isto. Estando escrito em grego o novo testamento ninguém algum dia se atreveu a dizer que eram o paradigma do mais puro grego. A prosa platónica e as poesias épicas eram bem mais consideradas paradigmas do bem escrever. Bem pelo contrário, constrangeu alguns dos padres da Igreja o que sabiam ser um grego menos elegante. E depois entram outras línguas em jogo. O alemão de Lutero. O inglês do rei Jaime. O checo, o francês, e tantas outras traduções da bíblia tornam-se canónicas. Por isso quando um cristão se cola à letra, algo de estreiteza teológica e inépcia filológica se passa na sua cabeça. O fundamentalista americano cita a palavra de Deus em inglês como boa. Como se Cristo tivesse falado em inglês.
A relação do cristão com a palavra divina corre por isso menos risco de cair no fetichismo. O livro sagrado é tradução. Sempre. Seja em versão grega, por maioria de razão latina, em eslavão antigo, russo, inglês, alemão, ou checo. Ninguém pode dizer que Deus se pronunciou em aoristo grego e menos ainda que foi por essa Sua expressão que se formou o epítome da língua grega. A letra é tradução. Por isso carece da mediação do concílio.
O passeio que fiz foi rápido e sumário. Mas cada espaço na Europa nos lembra (ou lembra quem não é cego) da infinitamente maior riqueza da cultura cristã. Não há um Beethoven Persa, um Bach marroquino, um Miguel Ângelo cairota, um Dante turco, um Gauss líbio, um Leibniz argelino. Não há nem nunca houve. O Islão foi sobretudo cultura de transmissão, mais que de criação infinita. O que já não é mau, mas é bem diverso da Europa.
Em época em que o discurso amansador da fera externa (porque é quem tem discurso amansador que vê o estrangeiro como fera, não o vendo eu dessa maneira não careço dele) nos manda dizer maravilhas de tudo o que existe só porque anda postado na praça, convém lembrar aos europeus a infinita riqueza da sua cultura, maior que alguma vez na História se viu. E que fonte dessa riqueza é o cristianismo por vias tão estranhas e ao mesmo tempo tão simples e evidentes, que escapam à maioria.
Toda a cultura tem base religiosa. Só o anestesista e a assepsia podem achar o contrário. Lembrar quais são as diferenças é a primeira base para o diálogo, diz-se. Mas não sou cultor da conversa desdentada, e diálogo é algo que se deve ter, senão entre iguais pelo menos entre comparáveis. Gostaria de lembrar que a primeira regra do diálogo é a de se perceberem as diferenças. De tanto se fictarem semelhanças acabamos por ter em comum apenas respirar e defecar. O que em si não é mau, mas cheira-me a pouco... e mal.
Alexandre Brandão da Veiga
3 comentários:
Muito bem!
Sabe bem ver claramente escrito aquilo que pensamos
de forma mais ou menos confusa.
Obrigado
João Wemans
Alexandre: obrigado.
Sinceros cumprimentos pela série, onde a argumentação, inevitavelmente ideológica e etnocêntrica q.b., está francamente bem estruturada.
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