quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Alguém esqueceu-se do mercado


A crise financeira dos últimos dias serve para recordar um facto muito simples: o mercado é um meio e não um fim. Já há muito tempo escrevi um texto em que defendia que era um erro confundir o Estado e o mercado com ideologias. Tratam-se apenas de duas formas diferentes de produzir decisões sociais.

Tal como o Estado, o mercado é um simples mecanismo de agregação das preferências individuais em decisões colectivas. No Estado, o instrumento fundamental de agregação dos interesses individuais em decisões colectivas é o processo político (legislando, administrando etc.). No mercado, são as transacções. Estamos perante dois processos de decisão social distintos: um com uma tendência mais atomista, descentralizada e de cooperação voluntária (o mercado), o outro assente, sobretudo, em mecanismos de decisão mais centralizados e de cooperação imposta (o Estado). Mas, mesmo a este respeito, é preciso notar que o próprio mercado gera fenómenos de centralização (o primeiro dos quais são as empresas: como notaram, por ex., Coase ou Williamson as empresas são instrumentos de coordenação e hierarquia necessários à redução dos custos de informação e transacção; são, no fundo, mini-Estados). Isto significa que nem sempre o mercado assenta na ou produz liberdade (da mesma forma que nem sempre o Estado reproduz o interesse público) mas significa, igualmente, que o mercado tal como o Estado exige mecanismos de responsabilidade.

Um das questões fundamentais das decisões colectivas é precisamente a responsabilidade: é esta que garante que a instituição que decide (Estado ou mercado) atende a todos os custos e benefícios potenciais (incluindo avaliando o risco). Quer Estado quer mercado têm de estar sujeitos a mecanismos de responsabilidade que correspondam às formas de poder e de decisão que assumam. No fundo, o que aconteceu na crise financeira foi que alguém se esqueceu de criar mecanismos de responsabilidade correspondentes às novas formas do mercado: criou-se uma cadeia de decisão em que o risco foi sendo transferido até ao ponto em que o último elo da cadeia já não tinha percepção do mesmo ou não estava em condições do avaliar. Isto não nos deve levar a colocar em causa o mercado mas apenas a recordar aquilo que é realmente o mercado.

4 comentários:

F. Penim Redondo disse...

Caro Miguel,

gosto da sua forma desapaixonada de abordar o assunto.

Eu até acho que a dicotomia estado-mercado é uma falsa dicotomia.

Muitos parecem esquecer que o Estado democrático se manifesta, na prática, pela acção dos seus orgãos eleitos e pelo "interesse público" que eles, a posteriori, definem. O George Bush é tanto "Estado" como o Chavez ou a Angela Merkel.

O mercado dos votos, com os seus exageros e os seus enganos, não é muito diferente de outro mercado qualquer. A democracia que temos nasceu para o sistema económico que temos, "à sua imagem e semelhança".

Já agora uma pergunta cínica: se as pessoas podem ser levadas a eleger um governante "progressista" que se proponha transformar profundamente a sociedade, se conseguem ter essa clarividência, porque não começam por se organizar profissionalmente fora do quadro das empresas capitalistas, castigando também como consumidores os comportamentos anti-sociais ?

Miguel Poiares Maduro disse...

Caro Fernando,

A última pergunta encerra o mistério do voto: resolve um problema de acção colectiva tendo por base um comportamento individual irracional (é que, individualmente, decidir votar é irracional pois o nosso voto nunca é decisivo...). Mas existem outras formas de acção colectiva(o mercado inclui algumas). Tudo depende dos incentivos certos. No caso dos consumidores os problemas são normalmente os custos de informação (saber quem culpar e como) e de transacção (normalmente os consumidores são afectados de forma tão insignificante a título invidual que não tem incentyivo para agir mesmo quando o custo colectivo é grande; e existem, igualmente, problemas grandes de coordenação). Mas, neste aspecto, as novas tecnologias podem reduzir muitos desses custos e promover essas formas de acção colectiva. Mas o Fernando sabe provavelmente muito mais do que eu sobre isso!
abraço
Miguel

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Meu caro Miguel
Resisti a comentar este teu post, sobretudo porque talvez esta conversa não interesse especialmente aqui.
Mas quero ainda assim dizer isto: concordando que as ideologias não devem confundir-se com o Estado e com o mercado, é bom notar, por outro lado, que a compreensão do Estado e do mercado será sempre - também - ideológica.
Tal como o é a proposta que aqui apresentas, que simplificando demasiado as coisas chega quase a uma identificação entre ambos - Estado e mercado -, numa visão, por isso mesmo, apenas processual e, assim, demasiado pragmática, própria de uma pretensa terceira via que, pretendendo situar-se "além da esquerda e da direita", fica, bem ao contrário, aquém delas, reduzindo a esfera da acção política e do serviço público a um mínimo ecomómico e político consensual e relegando a sua discussão unicamente para a questão dos meios.
Importa não esquecer, porém, para lá de eventuais semelhanças processuais, que as decisões sociais produzidas pelo mercado e pelo Estado procedem de entidades que têm naturezas distintas. Têm diferentes fins e têm diferentes meios. O Estado, com efeito, não é satisfatoriamente definido como um mecanismo - muito menos um mecanismo simples; nem a sua tarefa é a de agregar preferências individuais em decisões colectivas.
Esta visão, sem dúvida realista, torna-se pessimista porque não diz a verdade toda, já que o Estado é também uma forma objectiva da representação política de uma sociedade perfeita, ou autónoma, que deste modo resulta da própria natureza humana e se dirige ao bem comum.
E é aí que reside a possibilidade efectiva do também natural equilíbrio dos mercados, considerados na sua própria esfera, privada, na qual as relações económicas se produzem.
Enfim, se alguma coisa ficou clara foi, talvez, que a conversa não petence a este lugar. Mas noutro, certamente, a continuaremos.

Um abraço

Gonçalo

Miguel Poiares Maduro disse...

Caro Gonçalo,

Acho que, desta vez, estamos em desacordo. Responder ao teu post para, pelo menos, tornar claro o meu lado desse desacordo seria bastante longo e terá de ficar para um dos próximos jantares. Direi apenas que eu não pretendo eliminar as divisões ideológicas mas acho que a forma mais útil de elas se manifestarem não é através da divisão Estado vs Mercado. Da mesma forma, eu não defendo que não existam diferenças bem relevantes entre Estado e Mercado, só que, na minha opinião, elas têm pouco de ideológico (não são por si só, e aqui claramente divergimos, diferenças de fins). Se me permites a auto-promoção eu explico este ponto em mais detalhe em duas crónicas no meu livro Crónicas de um Peixe Fora de Água. Eu depois ofereço-te para discordares de mim eventualmente ainda com mais razão...
um abraço
Miguel