domingo, 10 de agosto de 2008

Prefiro o choque

Gostaria de subscrever e praticamente subscrevo tudo o que o Miguel Maduro disse aqui sobre o assalto e sequestro numa delegação do BES que acabou com um dos assaltantes abatido a tiro pela polícia.
E, de repente, o Miguel afirma: “A morte pode, como naquele caso, ser uma razão de alívio (porque significou a libertação das vítimas) mas nunca deveria deixar de nos chocar.” Nesta asserção está implícita uma certa crítica às televisões que transmitiriam, como se de uma ficção se tratasse, as imagens que antecederam e reproduziram o tiro certeiro do “sniper” e a queda irreversível do audacioso e jovem brasileiro.
Mas, Miguel, nós, ocidentais, temos desenvolvido, nas últimas décadas, uma cultura que visa “naturalizar” a morte! Procurámos a sanitização da morte para que ela deixasse de nos chocar. Nos funerais de “pessoas civilizadas” já ninguém chora. Esse extraordinário espectáculo de mulheres que se rojavam pelo chão aos gritos quando lhes morriam os maridos ou de homens que esmurravam o próprio peito ao perder a amada é considerado deslocado e socialmente constrangedor. As pessoas dão, com ar ligeiramente mais grave, os pêsames e, a seguir, juntam-se aos amigos procurando todos recordar episódios divertidos ou meio nostálgicos, mas sobretudo reprimem lágrimas e convulsões. Longe vão os ruidosos tempos de carpideiras e choros colectivos.
Só que, de vez em quando, a nossa natureza recalcada regressa e exibe-se triunfante. O caldo de violência de que a humanidade brotou é-nos intrínseco. A vontade de poder nitzscheniana não nos diz outra coisa. Como, da Ilíada ao Hamlet, com as sua narrativas de violência e morte, Homero e Shakespeare se de alguma coisa foram cantores, foi desse triunfo da natureza, do conflito e da crueldade.
Não quero comparar as televisões a nenhum daqueles poetas, mas parece-me que nenhuma “narrativa informativa” do assalto ao BES seria rigorosa se não figurasse a morte. Da mesma forma que nenhuma “narrativa ficcional” da vida contemporânea pode ignorar a violência diária, nenhuma “narrativa informativa” feita na noite de 6ª em Campolide poderia “effacer” o que os próprios assaltantes procuraram e, em certa medida, desejaram.
Recordo que os dois jovens brasileiros tinham aparentemente um status económico equilibrado, estavam socialmente inseridos, e eram estimados pelos vizinhos portugueses. O assalto que fizeram não nasceu de um quadro social de miséria e tormento. Os assaltantes pensaram a sua acção de forma amoral e determinada e terão mesmo decidido que seria preferível o suicídio e a violência a uma rendição pacífica. Não mostrar isso seria, uma vez mais, tratar de forma sanitária a realidade. Prefiro o choque.

4 comentários:

Miguel Poiares Maduro disse...

Caro Manuel,

Não era uma crítica às televisões, talvez a alguns dos comentários feitos nessa noite mas, sobretudo, reconheço-o, tinha muito de introspecção sobre como eu próprio assisti aquelas imagens e a dificuldade que tive em me chocar com a morte.
Quanto ao resto, estou totalmente de acordo, excepto num ponto: não vejo muita diferença entre a forma como se vive a morte hoje e como se vivia antes (com as carpideiras e reacções semelhantes). Estas últimas não representavam um choque maior com a morte. São apenas formas sociais diferentes de procurar o mesmo: um ritual que permite a expiação da dor que a morte envolve.

Um abraço
Miguel

Anónimo disse...

Concordo com os dois, Manuel e Miguel.
Mais uma vez, na minha condição de "curioso", deixo
a sugestão de leitura (esta ainda não fiz): "Réussir sa mort" de Fabrice Hadjadj - que toca neste ponto fraco do actual mundo ocidental descristianizado - a Morte sem perspectiva no Além.
Melhores cumprimentos,

João Wemans

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Manuel, desta vez vou eu contrariá-lo, reciclando, para isso, muito resumidamente, algo que há já algum tempo escrevi. É que não concordo que os textos homéricos sejam esse canto de uma natureza violenta e cruel, nem que essa visão seja consonante com a pretensa amoralidade do acto destes dois infelizes brasileiros.
Os poemas homéricos, segundo creio, dão-nos conta, de um modo narrativo, da estrutura própria do real. Essa estrutura, ou dinamismo do ser, compreendida a partir do humano, poderá descrever-se assim: primeiro, uma separação, uma dolorosa contracção do ser afirmando-se idêntico a si mesmo e diferente de todos os outros; segundo, a possibilidade de um caminho, abrindo-se ante essa afirmação do ser; terceiro, o encontro com o outro, feito no caminhar, no qual reconheço a mim mesmo como diferente e ao outro como igual a mim; quarto, a unidade reencontrada e diferenciada pelo próprio encontro... e logo outra vez perdida.
Ora, na Grécia, esta expressão racional do ser, narrativamente assumida na tragédia, anunciava-se já desde os tempos homéricos, cujos poemas são uma fabulação pela qual se mostra a acção do povo grego (nesses textos representante do ser humano) que, por causa de um crime, ou traição, se encontra e reúne, face a um inimigo comum, esforçando-se por, finda a guerra, regressar à sua perdida casa.
Acredito, neste sentido, que a estrutura do ser humano é intrinsecamente moral, isto é, que o ser humano é um ser relativo que necessita do outro para ser o que é, pelo que não entendo a acção destes homens como amoral, mas como imoral, e a julgo como trágica e infeliz.
Creio que, assim entendidos os conceitos, acabaremos por não divergir muito um do outro, mas não resisti a este pequeno esclarecimento que muito me diz e o Manuel certamente me perdoará.
Um abraço :)

Manuel S. Fonseca disse...

Miguel, escusado será dizer que partilho reservas quanto à forma como nas televisões, mas também nas rádios, foi relatado o minuto a minuto do assalto. É um trabalho dificil e feito sem rede, mas exactamente por ser assim deveriam ser reforçados os meios que suavizem a exposição dos repórteres. Sobre os rituais de morte e a diferença entre ontem e hoje, vou pensar melhor.
Obrigado ao João Wemans pela sugestão de leitura que parece muito atractiva.
E com o Gonçalo já falei noutro post.