O carmesim da obscenidade
"Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul." É com esta frase que Vladimir Nabokov começa o romance que mais fama e mais proveito lhe deu em toda a sua carreira.
A tradução portuguesa, na versão que tenho, editada pela Teorema em 1987, acompanha com correcção o exaltado garbo com que Nabokov tratou a língua inglesa, e cito: “Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma.” Reconhece-se o honesto esforço, mas escapa-lhe a cadência da aliteração do original e, tratando-se do que se trata, é pena que a tradução portuguesa tenha associado o fogo que emana da visão de Lolita a uma conceptual “virilidade”, quando em inglês o mesmo fogo abrasa com precisão anatómica os “loins” que são o pecado e a alma do narrador.
Se falo de “Lolita”, o romance de Nabokov que Graham Greene foi o primeiro a louvar e Stanley Kubrick o primeiro a adaptar ao cinema, não é para exercitar dotes de crítico literário que não tenho.
Recordo apenas que, neste 2008 em curso, faz 50 anos que o romance viu a luz do dia nos Estados Unidos da América. Antes, quatro editores tinham recusado o livro com receio – melhor, com medo – da controvérsia. Não era caso para menos. Por mais voltas que lhe possamos dar, “Lolita” é a história de um pedófilo. Narrada com admirável estilo – ou não tivesse Nabokov dito do seu narrador, Humbert Humbert: “É sempre de esperar num assassino uma prosa de estilo caprichoso” – continua ainda assim a ser a história de um pedófilo. Tratada com brilho literário, a monstruosidade não deixa de ser monstruosidade, a perversão tem sempre o leve cheiro a esgoto da perversão.
As fantasias desviantes de Humbert Humbert acabaram por ser acolhidas em livro, pela primeira vez, em França. O facto é tão irónico como justo. Afinal, Humbert Humbert, o protagonista de “Lolita”, é um parisiense, especialista em literatura francesa. E fora em França que se animara à inclinação para as ninfitas (ou ninfetas?) que constitui o centro do que virá a ser o seu périplo americano, “depois de um Inverno de tédio e pneumonia em Portugal”.
A publicação em França foi pacífica e discreta. Seguiu-se o escândalo da edição inglesa, em 1956. Dois anos depois, o livro foi editado nos Estados Unidos. Surpresa: sem polémica e com vendas astronómicas.
Não admira. Há coisas que baralham o mais pudico e resistente dos leitores: “Lolita”, a história de um pedófilo francês envolvido com uma ninfeta americana, é superiormente escrita em inglês por um autor russo. Depois de tão nebuloso e improvável puzzle, o leitor está pronto para enfrentar alguma lascívia, que é como quem diz, o carmesim da obscenidade.
Com a devida vénia, do Pnet Homem
2 comentários:
Manuel, há cerca de dois anos participei num concurso que previa uma prova escrita em inglês. Dez dias antes da prova entrei numa livraria. Comprei alguns livros. Um do século XIX, a Lolita para o século XX um Roth para o séc XXI.
Só li Nabokov. O livro originariamente escrito em inglês por um russo a viver nos EUA, depois de ter vivido em França, é superiomente escrito.
No exame, enquanto deambulava pelas questões de política internacional e de ciência política, só me ocorria um parágrafo que havia decorado para sempre.
" While my body knew what it craved for, my mind rejected my body´s every plea."
Ninguém deu pela heresia, apaixonei-me por Nabokov e passei no exame.
Sofia, que bom que é quando o corpo se sacia e a mente não se escusa. Atrevo-me a dizer que, nessse caso, não há corpo que aguente e mente que não suplique.
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