terça-feira, 5 de agosto de 2008

Mau Pai, Bom Filho, Grandes Pianistas

A moral em arte não risca. Bebo Valdés, hoje com 90 anos, é um dos sobreviventes dos anos dourados da música cubana. Nas décadas de 40 e 50, Bebo tocou rumbas, danzón e mambo. De vez quando, cruzou ritmos afro-cubanos com o jazz, o que fez dele um deus no mais lendário dos cabarets, o Tropicana, que acabou por dirigir.
Bebo Valdés é neto de escravos. Aos 17 anos, veio estudar música em Havana, ganhando a vida a descascar batatas. Cantava (o que eu jamais poderia ter feito) e tocava maracas (tão fácil que talvez eu pudesse ter tentado). Foi grande entre os grandes e ensinou Nat King Cole a cantar em espanhol.
Depois chegou Fidel. E os seus barbudos. Para Bebo o ritmo mudara. Um dia, tinha um dos seus músicos à espera, à porta de casa, com fusil revolucionário ao ombro, explicando-lhe, em compasso binário simples, que quem não é por nós é contra nós. Bebo tinha pai, mãe, mulher e cinco filhos. Foi comprar uma caixa de fósforos ao México e nunca mais voltou a Cuba. A mulher ainda soube que ele se ia embora. Aos filhos nem disse adeus. Um pai destes não se recomenda a ninguém.
Do México viajou para Estocolmo, onde viveu três décadas. Três esquecidas décadas a tocar em hotéis. Ressuscitou nos anos 90, quando Paquito D’ Riviera lhe editou o cd “Bebo Rides Again”. E “El Caballón”, como era conhecido o seu metro e oitenta e quatro, voltou a respirar pelas mãos. E que bem que Bebo respira quando as mãos dele tocam piano. Bebo, o homem que abandonou mulher e filhos, é hoje, aos 90 anos, uma estrela da música mundial, com direito a um documentário, “Old Man Bebo”. Mesmo sem o ter visto, considero-o já uma obra-prima (ganhou prémios nos festivais de Tribeca e Barcelona).
Chucho Valdés é filho de Bebo. Tinha 19 anos quando o pai o deixou a ele, à mãe, aos avós e aos irmãos. Acompanhara o pai para todo o lado e chegara a pianista na orquestra dele. Em 1960, ninguém disse a Chucho que o pai ia partir. Nem ao aeroporto o levaram. Quando descobriu, jurou à mãe que nunca a abandonaria. Cuidou dela e dos irmãos e converteu-se no maior pianista de Cuba.
Tocou com músicos fabulosos, nunca se envolveu em política e, sobretudo, recusou fugir da ilha cercada. Hoje convidam-no para tudo. Em Montreal, tocou na igreja da Santíssima Trindade, santuário de concertistas clássicos e de um público reservado e frio. Conta ele: “Primeiro toquei «Les Feuilles Mortes» em estilo barroco e quando acabei com um prelúdio de Bach o público pôs-se em pé e começou a gritar. Então, meti tumbaos a Debussy. Faço o que me apetece.” Dizem que é o melhor pianista do mundo. Ele diz que não, que é o pai!
São os dois, como se pode ver no reencontro emotivo, o segundo, do vídeo abaixo. Bebo terá sido mau pai. Chucho foi o melhor dos filhos. Está visto: a moral não toca piano.





Pai, piano e filho


Publicado no Pnet Homem

5 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Manel, fiz um post com jazz soviético do tempo de Stalin, tens que vê-lo.

andrea disse...

Ainda bem que ha alguem de serviço neste blog.
Abraços solidarios.
RA.

Anónimo disse...

O mais interessante é que Bebo, cuja desarmante simpatia pude conhecer vagamente numa cerimónia de entrega de prémios em Madrid (em 2002 ou 2003), actuou para os portugueses durante uma longa temporada, não faz muito tempo. Na verdade, pouco antes desse encontro. O espectáculo Calle 54 (salvo erro) esteve em cena em Lisboa durante dias a fio e, aparentemente, ninguém deu por nada. Ele era o pianista mas será esta a nossa Cuba?
MC

PS - nos seus tempos de lounge lizard (:-) ele lembra-se de tocar, noites a fio, April in Portugal, a canção portuguesa mais conhecida em todo o mundo e presença invariável nas melhores listas de easy-listening

Manuel S. Fonseca disse...

Taxi, já li e já vi. Grandes descobertas, mas os tumbaos dos cubanos têm o feeling que a avant-garde dos sóvias não tinha.

Manuel S. Fonseca disse...

Hey Ricardo A.
Manda notícias. Komo é que tá Paris? Olha, nem de propósito: vou postar umas memórias da Rue du Bac. Espero comentários teus. Abraço