Marilyn quando era ELA
Abençoada morte. Em Hollywood e em vida toda a estrela é um cometa: num segundo ilumina o mundo, um minuto depois é já veneno de box-office. Depois da morte, e por causa da morte, Marilyn Monroe resistiu a tudo.
Qual sic transit gloria mundi! Marilyn está para lavar e durar. Provam-no milhões de postais, cartazes, fotos, livros e reedições de filmes.
No cinema, fez de adúltera, alcoólica, cantora, míope, gold digger e vizinha. Mas quantas vezes foi essa ela de que, numa espécie de deslize freudiano, Marilyn falou um dia a Susan Strasberg, uma das suas melhores amigas?
A história passou-se em Nova Iorque, na rua. Marilyn saíra sem pinturas, penteado ou traje especial. Podia, assim, passear pacificamente, sem temer as turbas de fãs. Mas, de repente, deu consigo aturdida pelo desejo de irrealidade que era chamar-se (ou poder ser) Marilyn. “Do you want me to be her?” (“Queres que eu seja ela?”), perguntou. E Strasberg só se lembra de a ver crescer, mudar, até ser ela. Marilyn tinha, afinal, consciência de trazer outro ser em si. Tinha-o no corpo e tinha-o na mão.
Em Evaristo Carriego, Jorge Luis Borges escreveu: “Que um individuo queira despertar noutro individuo recordações que apenas pertencem a um terceiro é um paradoxo evidente. Executar com despreocupação esse paradoxo é a vontade inocente de toda a biografia.” Que biografia alheia é que Marilyn executava quando era ela? Parafraseando os “recuerdos de recuerdos de otros recuerdos” de Borges, muitas devem ter sido as recordações de recordações de outras recordações crescendo nela, até lhe darem esse “a lot of animal magnetism” que levava um menino milionário, em Gentlemen Prefer Blondes, a ajudá-la a sair da escotilha em que a largura de ancas a deixara ficar presa.
Arrisco uma hipótese de explicação, modesta e tradicional. Marilyn, quando era ela, era antes de mais o eco dos múltiplos terceiros que foram as peças do puzzle da sua infância.
Vamos aos registos. Na papeleta do L. A. General Hospital consta o nascimento, a 1 de Junho de 1926, de Norma Jeane Mortensen. A breve trecho o patronímico desapareceria, fazendo justiça ao buraco negro da sua paternidade, desaparecendo também o último “e” de Jeane. Ficou só Norma Jean. Ou, para efeitos civis, Norma Jean Baker, do nome da mãe, Gladys Baker, com a qual Marilyn deixou de viver aos oito anos, altura em que a senhora Baker foi internada num hospital de saúde mental, tendo-lhe sido diagnosticado a mesma esquizofrenia que destruíra a vida dos seus pais e irmão.
A infância de Marilyn, com mãe internada e paternidade incógnita, pode arrolar-se nos milhões de infâncias infelizes que povoam orfanatos, tutores e famílias adoptivas. A Hollywood não escapou o segredo mal guardado dessa infância infeliz.
“She seemed like a lost child”, comentou o actor Robert Mitchum. Ela parecia uma criança perdida, uma doce criança perdida. Há uma cena reveladora em The Asphalt Jungle, de John Huston.
Marilyn era, no filme, a sobrinha – eufemismo com que se recobria, aos olhos dos censores, a relação de mocinha nova com homem mais velho – de um advogado escroque, Louis Calhern. Nessa tal cena, a altas horas da noite, Calhern olha para Marilyn com a mais equívoca ternura paternal e diz: “Some sweet kid. It's later. Why don't you go to bed...” (“Doce menina. É tarde. Porque é que não vais para a cama”). Marilyn desliza com volúpia pelo sofá, dá-lhe um beijo de despedida e começa a andar para o quarto, “being her” – porque esse sendo ela é que faz o ponto da cena. O realizador corta o plano no andar dela e dá-nos o contracampo do rosto de Louis Calhern olhando-a e repetindo dubiamente: “Some sweet kid”.
Qual sic transit gloria mundi! Marilyn está para lavar e durar. Provam-no milhões de postais, cartazes, fotos, livros e reedições de filmes.
No cinema, fez de adúltera, alcoólica, cantora, míope, gold digger e vizinha. Mas quantas vezes foi essa ela de que, numa espécie de deslize freudiano, Marilyn falou um dia a Susan Strasberg, uma das suas melhores amigas?
A história passou-se em Nova Iorque, na rua. Marilyn saíra sem pinturas, penteado ou traje especial. Podia, assim, passear pacificamente, sem temer as turbas de fãs. Mas, de repente, deu consigo aturdida pelo desejo de irrealidade que era chamar-se (ou poder ser) Marilyn. “Do you want me to be her?” (“Queres que eu seja ela?”), perguntou. E Strasberg só se lembra de a ver crescer, mudar, até ser ela. Marilyn tinha, afinal, consciência de trazer outro ser em si. Tinha-o no corpo e tinha-o na mão.
Em Evaristo Carriego, Jorge Luis Borges escreveu: “Que um individuo queira despertar noutro individuo recordações que apenas pertencem a um terceiro é um paradoxo evidente. Executar com despreocupação esse paradoxo é a vontade inocente de toda a biografia.” Que biografia alheia é que Marilyn executava quando era ela? Parafraseando os “recuerdos de recuerdos de otros recuerdos” de Borges, muitas devem ter sido as recordações de recordações de outras recordações crescendo nela, até lhe darem esse “a lot of animal magnetism” que levava um menino milionário, em Gentlemen Prefer Blondes, a ajudá-la a sair da escotilha em que a largura de ancas a deixara ficar presa.
Arrisco uma hipótese de explicação, modesta e tradicional. Marilyn, quando era ela, era antes de mais o eco dos múltiplos terceiros que foram as peças do puzzle da sua infância.
Vamos aos registos. Na papeleta do L. A. General Hospital consta o nascimento, a 1 de Junho de 1926, de Norma Jeane Mortensen. A breve trecho o patronímico desapareceria, fazendo justiça ao buraco negro da sua paternidade, desaparecendo também o último “e” de Jeane. Ficou só Norma Jean. Ou, para efeitos civis, Norma Jean Baker, do nome da mãe, Gladys Baker, com a qual Marilyn deixou de viver aos oito anos, altura em que a senhora Baker foi internada num hospital de saúde mental, tendo-lhe sido diagnosticado a mesma esquizofrenia que destruíra a vida dos seus pais e irmão.
A infância de Marilyn, com mãe internada e paternidade incógnita, pode arrolar-se nos milhões de infâncias infelizes que povoam orfanatos, tutores e famílias adoptivas. A Hollywood não escapou o segredo mal guardado dessa infância infeliz.
“She seemed like a lost child”, comentou o actor Robert Mitchum. Ela parecia uma criança perdida, uma doce criança perdida. Há uma cena reveladora em The Asphalt Jungle, de John Huston.
Marilyn era, no filme, a sobrinha – eufemismo com que se recobria, aos olhos dos censores, a relação de mocinha nova com homem mais velho – de um advogado escroque, Louis Calhern. Nessa tal cena, a altas horas da noite, Calhern olha para Marilyn com a mais equívoca ternura paternal e diz: “Some sweet kid. It's later. Why don't you go to bed...” (“Doce menina. É tarde. Porque é que não vais para a cama”). Marilyn desliza com volúpia pelo sofá, dá-lhe um beijo de despedida e começa a andar para o quarto, “being her” – porque esse sendo ela é que faz o ponto da cena. O realizador corta o plano no andar dela e dá-nos o contracampo do rosto de Louis Calhern olhando-a e repetindo dubiamente: “Some sweet kid”.
A menina doce, a insistente e ambígua imagem de infância que se oferece (e entrega) à impureza gourmet do olhar adulto, talvez seja – pode ser que seja – o segredo da persistência da imagem de Marilyn, desse “being her” a que, quando queria e com vontade inocente, foi escrevendo a biografia. Com paradoxal despreocupação borgesiana.
Adaptação de artigo publicado no Expresso em Outubro de 1992.
1 comentários:
Manuel, era essa a história a que me referia antes. A confirmar que é o olhar dos outros que nos transfigura. Saber quem é objecto e quem é sujeito nessa relação de metamorfose, tem que se lhe diga.
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