sábado, 9 de agosto de 2008

A ficcionalização da morte em directo



No caso do sequestro do BES perturbou-me a forma como me pareceu ser tratada a morte. A transmissão pela televisão da morte em directo não a tornou mais real mas sim quase ficcional. Subconscientemente penso que todos associámos as imagens com uma qualquer série de televisão e não com a realidade da morte. De tanto lidarmos com aquele tipo de imagens televisivas num contexto de ficção deixámos o choque da realidade ser dominado pela narrativa do cinema. O próprio tratamento pelas televisões parecia ficcionar aquilo a que assistimos: a história do crime e a sua resolução sobrepôs-se ao choque da morte. A morte pode, como naquele caso, ser uma razão de alívio (porque significou a libertação das vítimas) mas nunca deveria deixar de nos chocar.
A polícia foi muito elogiada pela sua eficácia mas eu queria sobretudo elogiá-la pelo seu comportamento ético. Foram os responsáveis policiais que, no dia seguinte, tiveram a inteligência e sensibilidade de nos recordar do drama da morte. Ouvir o comandante nacional da PSP a defender vigorosamente a necessidade de preservar a dignidade mesmo dos criminosos (protegendo a sua identidade, preservando as suas famílias e procurando evitar reacção xenófobas) e o responsável dos GOE a resistir à exaltação da operação, lamentando a morte e lembrando que esta é sempre a ultima ratio, encheu-me de orgulho e reforçou a minha confiança nas chefias das nossas forças policiais. Talvez seja necessário lidar com a morte para compreender que nunca se deve ficar indiferente a ela. O comportamento daqueles responsáveis fez-me acreditar que não temos apenas uma polícia tecnicamente competente mas, igualmente importante, uma chefia inteligente.


2 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Miguel, inteiramente de acordo. E chocou-me também a insensibilidade com que, pelo menos a TVI, fazia cortes nos programas que estava a transmitir para, cheirando a hipótese do sangue, tentar mostrar-nos essas mortes em directo - como se fosse importante e correspondesse a algum dever de informação!

F. Penim Redondo disse...

Miguel, eu acho que a realidade nos insensibiliza mais do que a ficção; como é possível "sentir" a morte de 80.000 pessoas no terramoto da China ou no tsunami da Tailândia ? ou mesmo das dezenas que morrem todos os dias em resultado de atentados à bomba?
Dada a magnitude das tragédias só se consegue "sentir" através de uma construção intelectual, "encenamos" os nossos próprios sentimentos e representamos para nós próprios.

No caso do terramoto na China, por exemplo, o que me comoveu até às lágrimas não foram os mortos mas os vivos que vagueavem por entre os escombros à procura das suas crianças. Também me comoveu a forma disciplinada como hordas de chineses lutavam para resgatar os sobreviventes.

Perante este gigantismo o que pode significar a morte de um indivíduo cujo olhar nunca vi, cuja voz nunca ouvi, cuja mão nunca me tocou ?