Aquiles dos pés velozes
Este post do Gonçalo desarrumou-me a noite. Acabei a trocar os Jogos Olímpicos pela minha velhinha edição da “Paideia”, de Werner Jaeger, e pela “Hélade” e “Estudos de História da Cultura Clássica”, da admirável Professora Maria Helena da Rocha Pereira.
A verdade é que para dialogar com o Gonçalo precisava de ajudas. E de grandes livros. Mas o que escrevo a seguir é teoria minha (ou será só preconceito meu). Foi o que ficou das horas de pouco e desordenado estudo que consegui encaixar nos anos de vida pouco recomendável em que coincidi passar pelos bancos da douta Academia.
O que escrevo não é, também, resposta ao Gonçalo cuja argumentação, convergindo para o Uno, não contesto, antes admiro. É só um diálogo de que saímos cada um por seu caminho.
Fiquei a pensar no que o Gonçalo escreveu: “não vejamos Aquiles e Heitor como dois – mas como um só!” Pensei, e depois de algumas peripatéticas voltas, a minha conclusão é sempre a mesma: na “Ilíada”, Aquiles não é um, é dois.
A sua origem é divina. Semi-deus, filho de um rei e da nereida Tétis, tão central como ausente na narrativa, Aquiles é o herói modelo. Nobre e corajoso, ele é o exemplo da areté (virtude) guerreira.
Mas Aquiles, o Aquiles que Homero nos apresenta é, desde o primeiro momento, humano, tragicamente humano. “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...” Aí está o homem: colérico, furioso e vingativo.
Aquiles é mesmo duas vezes vingativo: contra Agamémnon que lhe rouba Briseida, a escrava que recebera como troféu de guerra; contra Heitor que matou o seu fiel Pátroclo. O rancor de Aquiles contra Agamémnon é mais forte do que a obrigação de lutar ao lado dos seus guerreiros que, impávido, deixa perecer às mãos sangrentas dos troianos que os deuses, instados por sua mãe, agora protegem.
Mais tarde, regressado ao campo de batalha e movido por uma vingança desabrida, Aquiles arrasta o cadáver de Heitor à volta do túmulo do Pátroclo, o amigo (“arrastei para aqui Heitor, para os cães o comerem cru;”), sob o olhar desfeito e agónico de Príamo, o pai do nobre vencido. Ímpio, recusa-lhe depois sepultura.
Se em Homero (ou no poema das múltiplas vozes que o seu nome recobre) Aquiles dos pés velozes (mas de frágil calcanhar) era duplo – deus e humano, tão nobre e corajoso como colérico e vingativo – nos séculos que se seguiram os poetas deram-lhe variadas máscaras. Foi personagem de Ésquilo numa trilogia perdida. Píndaro atribui-lhe uma infância maravilhosa. Shakespeare transforma-o num monstro de vaidade em “Tróilo e Créssida”. Goethe, como na “Ilíada”, mostra-o consciente de que terá vita brevis.
Nesta pluralidade, de rostos resplandecentes e armaduras faiscantes, reside a beleza que me atrai e o consolo que procuro. Nenhuma síntese, mesmo verdadeira, me dará tanto som, tanta fúria.
O que escrevo não é, também, resposta ao Gonçalo cuja argumentação, convergindo para o Uno, não contesto, antes admiro. É só um diálogo de que saímos cada um por seu caminho.
Fiquei a pensar no que o Gonçalo escreveu: “não vejamos Aquiles e Heitor como dois – mas como um só!” Pensei, e depois de algumas peripatéticas voltas, a minha conclusão é sempre a mesma: na “Ilíada”, Aquiles não é um, é dois.
A sua origem é divina. Semi-deus, filho de um rei e da nereida Tétis, tão central como ausente na narrativa, Aquiles é o herói modelo. Nobre e corajoso, ele é o exemplo da areté (virtude) guerreira.
Mas Aquiles, o Aquiles que Homero nos apresenta é, desde o primeiro momento, humano, tragicamente humano. “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...” Aí está o homem: colérico, furioso e vingativo.
Aquiles é mesmo duas vezes vingativo: contra Agamémnon que lhe rouba Briseida, a escrava que recebera como troféu de guerra; contra Heitor que matou o seu fiel Pátroclo. O rancor de Aquiles contra Agamémnon é mais forte do que a obrigação de lutar ao lado dos seus guerreiros que, impávido, deixa perecer às mãos sangrentas dos troianos que os deuses, instados por sua mãe, agora protegem.
Mais tarde, regressado ao campo de batalha e movido por uma vingança desabrida, Aquiles arrasta o cadáver de Heitor à volta do túmulo do Pátroclo, o amigo (“arrastei para aqui Heitor, para os cães o comerem cru;”), sob o olhar desfeito e agónico de Príamo, o pai do nobre vencido. Ímpio, recusa-lhe depois sepultura.
Se em Homero (ou no poema das múltiplas vozes que o seu nome recobre) Aquiles dos pés velozes (mas de frágil calcanhar) era duplo – deus e humano, tão nobre e corajoso como colérico e vingativo – nos séculos que se seguiram os poetas deram-lhe variadas máscaras. Foi personagem de Ésquilo numa trilogia perdida. Píndaro atribui-lhe uma infância maravilhosa. Shakespeare transforma-o num monstro de vaidade em “Tróilo e Créssida”. Goethe, como na “Ilíada”, mostra-o consciente de que terá vita brevis.
Nesta pluralidade, de rostos resplandecentes e armaduras faiscantes, reside a beleza que me atrai e o consolo que procuro. Nenhuma síntese, mesmo verdadeira, me dará tanto som, tanta fúria.
3 comentários:
Manuel, que bela insónia. Queria, no entanto, dizer-lhe que a minha argumentação não converge, de todo, para o uno (pelo menos para o uno que é um, ou que é indiferentemente todos). Por isso também comecei por dizer que Aquiles é dois, humano e divino (aí residindo o mais fundo da sua escolha), acrescentando, depois, que Heitor e Aquiles são um. Daí a conclusão de que, de acordo com a nossa experiência, somos um que é muitos e muitos num.
Quanto ao mais, não vou explicar o que escrevi. É quase tão mau como explicar uma anedota. Mas sobretudo porque das nossas duas insónias saiu uma proximidade grande, inclusivamente na consciência dos diferentes caminhos.
Síntese, por isso - como ambos dissemos -, cada um faz a sua, ainda que sempre em diálogo com os outros. Como dissemos que essa síntese que, consciente ou inconscientemente, inevitavelmente nos ajuda a compreender a realidade, não deve nunca pôr-se no lugar da própria realidade, porque só essa nos faz interiormente vibrar. E certamente que, na sua insónia, a releitura de alguns textos da Ilíada o fez interiormente vibrar. Como a mim. O mais extraordinário que fica, de facto, é o poder imenso destes textos revolvendo imediatamente o interior de nós dois, que, afinal, se mostra o mesmo.
Manuel, deixo-lhe aqui um desafio. Conte-nos a sua versão do episódio da escrava Briseida.
Sofia,
Para já, e se tiver lido o meu post titulado "De Homero a Campolide", verificará que, quase no fim, ao descrever a "indignidade" de Agamémnon, digo que ele rouba a escrava a Ulisses em vez de Aquiles, como é. É um erro que não alterei propositadamente. Saiu assim, e deixei ficar como exemplo da escrita automática da "net".
Salvo esta "versão", em que troquei velozmente o glorioso Aquiles pelo sábio Ulisses, reescrevendo com rude atrevimento a "Ilíada", só me falta mesmo pegar fogo à biblioteca de Alexandria!
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