III. “Carpe diem” e power point
Quais são os elementos deste pensamento de Horácio?
Em primeiro lugar, o nosso uso do tempo não é garantido. Mas mais que isso; não é legítimo. É pomar que se nos apresenta e de que podemos roubar os frutos, mas não é propriedade nossa nem nosso usufruto sequer. Nem somos locatários do século. Apenas seus salteadores.
Em segundo lugar, somos impotentes. Contamos com a incerta generosidade de um deus ignorado para que as coisas voltem ao seu sítio. Curiosa ideia. A nossa época, a mesma que propala o “carpe diem”, diz que não há sítio certo para as coisas. Mas Horácio, o criador da expressão, sabia bem mais que o homem da rua actual. Se se deve “carpere diem” é porque se sabe que as coisas não estão no seu sítio. Ou seja, existe um sítio devido para as coisas, e a sua ordem natural está abalada. Não é a falta de referências que impera, mas a quebra de ligação com essas referências. O ser humano deixa de ser passageiro para ser náufrago sem bússola. Não é por isso que não existe Norte. Apenas perdemos o sentido de orientação. Não estamos mais sábios por termos descoberto que não haveria ponto de referência. Estamos mais pobres porque o ignoramos.
Em terceiro lugar, toda a nossa apropriação é ilegítima. Gozamos os frutos do tempo como o salteador goza do fruto do seu saque. À noite, longe da vida aberta. A fruição passa sempre às escondidas, é rápida e aflita. O mundo transforma-se em sala de urgências. Apenas há tempo para salvar o doente, não para cuidar dele. O nosso objectivo deixa a ser a qualidade de vida, mas apenas o assustado aproveitamento de uma ocasião.
Em quarto lugar, temos de usar violência, temos de roubar, para fruir. É o mesmo Horácio que em várias odes conta como se salvou de uma potencial morte pela queda de uma árvore numa sua propriedade, que lhe havia sido oferecida por Mecenas. A árvore que cai é como o símbolo da guilhotina, ou a tesoura das Parcas que nos corta o fio da vida. Mas esse fio deixou de ser condutor. Não que ele não exista. Estamos apenas perdidos perante ele. Por isso o cultor do “carpe diem” vive no meio da violência e usa da violência.
Em quinto lugar, tudo é incerteza (“fortasse”, talvez). É evidente. A incerteza foi inventada para ser um estado temporário. Quando o ser humano inventou o “talvez” pensou aplicá-lo à hesitação, não à caça. O talvez é uma pausa, uma preparação que um momento a que se deve seguir uma impulsão. O caçador põe-se de cócoras antes de agir. Tem uma finalidade, essa pausa. Mas quando deixa de ter finalidade, e deixa de ser uma pausa, para ser o fundamento, o ponto estático da vida humana, o cultor do “carpe diem” mostra qual a sua posição: vive de cócoras.
Em primeiro lugar, o nosso uso do tempo não é garantido. Mas mais que isso; não é legítimo. É pomar que se nos apresenta e de que podemos roubar os frutos, mas não é propriedade nossa nem nosso usufruto sequer. Nem somos locatários do século. Apenas seus salteadores.
Em segundo lugar, somos impotentes. Contamos com a incerta generosidade de um deus ignorado para que as coisas voltem ao seu sítio. Curiosa ideia. A nossa época, a mesma que propala o “carpe diem”, diz que não há sítio certo para as coisas. Mas Horácio, o criador da expressão, sabia bem mais que o homem da rua actual. Se se deve “carpere diem” é porque se sabe que as coisas não estão no seu sítio. Ou seja, existe um sítio devido para as coisas, e a sua ordem natural está abalada. Não é a falta de referências que impera, mas a quebra de ligação com essas referências. O ser humano deixa de ser passageiro para ser náufrago sem bússola. Não é por isso que não existe Norte. Apenas perdemos o sentido de orientação. Não estamos mais sábios por termos descoberto que não haveria ponto de referência. Estamos mais pobres porque o ignoramos.
Em terceiro lugar, toda a nossa apropriação é ilegítima. Gozamos os frutos do tempo como o salteador goza do fruto do seu saque. À noite, longe da vida aberta. A fruição passa sempre às escondidas, é rápida e aflita. O mundo transforma-se em sala de urgências. Apenas há tempo para salvar o doente, não para cuidar dele. O nosso objectivo deixa a ser a qualidade de vida, mas apenas o assustado aproveitamento de uma ocasião.
Em quarto lugar, temos de usar violência, temos de roubar, para fruir. É o mesmo Horácio que em várias odes conta como se salvou de uma potencial morte pela queda de uma árvore numa sua propriedade, que lhe havia sido oferecida por Mecenas. A árvore que cai é como o símbolo da guilhotina, ou a tesoura das Parcas que nos corta o fio da vida. Mas esse fio deixou de ser condutor. Não que ele não exista. Estamos apenas perdidos perante ele. Por isso o cultor do “carpe diem” vive no meio da violência e usa da violência.
Em quinto lugar, tudo é incerteza (“fortasse”, talvez). É evidente. A incerteza foi inventada para ser um estado temporário. Quando o ser humano inventou o “talvez” pensou aplicá-lo à hesitação, não à caça. O talvez é uma pausa, uma preparação que um momento a que se deve seguir uma impulsão. O caçador põe-se de cócoras antes de agir. Tem uma finalidade, essa pausa. Mas quando deixa de ter finalidade, e deixa de ser uma pausa, para ser o fundamento, o ponto estático da vida humana, o cultor do “carpe diem” mostra qual a sua posição: vive de cócoras.
Em sexto lugar, as coisas não estão no seu sítio. O mundo não está instalado. Já não é cada coisa que perdeu o Norte. Ou melhor, em relação à qual perdemos o Norte. É o próprio mundo que se mostra como inacabado, hostil. Visão realista, dirão uns. O problema é que esta postura nada tem de realista. O ser humano, que tem um ciclo de vida certo, no meio de tanto incerto episódio, esquece o ciclo, esquece o certo, e julga-se instalado numa barraca. O mundo passa a ser um imenso acampamento militar do qual se tem de sair quando a oportunidade surge. Não é peregrino, nem sequer fugitivo, porque não tem para onde fugir, por a morte não ser forçosamente descanso.
E em sétimo lugar: temos de nos calar. Falamos demais. Ou melhor o discurso, a palavra, a comunicação são vãos no essencial. Suprema ironia num artista da palavra como Horácio. Mas triste realismo da nossa época. O inepto da palavra apropria-se do espaço público. Impede os outros de articular e afirma que a articulação não é possível. Não gosta de comparações, porque todas elas o desfavoreceriam. E quer o silêncio igualmente por outra razão que não pode confessar, porque para ele o mais fundo da vida é sempre inconfessável. Tanta ânsia mostra apenas uma imensa nostalgia da estabilidade. O cultor do “carpe diem” é alguém que aspira a ser conservador e não o consegue. Proclamar o seu fim seria pôr a nu o ridículo dos seus meios.
É evidente que podemos fazer mil interpretações sobre até que ponto as guerras civis constantes da República Romana lhe influenciaram o pensamento. Mas por mais que isso possa eventualmente explicar (sempre parcialmente) o pensamento de Horácio, não explica por que razão a nossa época dá tanto assento à sua frase do “carpe diem”. Se o divulga, se o usa, se carece desta exortação é porque tem o mesmo tipo de pensamento triste, sem ter a mesma capacidade de enunciação. Até para definir um modo de ver precisou de roubar a autor antigo a expressão da sua angústia.
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