terça-feira, 8 de julho de 2008

II. “Carpe diem” e power point

Vejamos agora o “carpe diem”. A expressão é de Horácio numa sua Ode.

Horácio é dos artistas mais consumados que a História já viu. Estranho destino a de um imenso artista, cheio de ideias artísticas e tão vazio de quaisquer outras. É dos raros casos que conheço em que a ideia em si mesma é banal e apenas a forma artística que assume lhe confere força. Nesse sentido legitimou uma tendência latina do artista pouco enriquecedor no campo das ideias. Tem a vantagem no entanto sob tantos outros de ter sido genial. Efectivamente genial.

A ideia por detrás do “carpe diem” cruza-se entre a mais elaborada filosofia (em versão vulgata, mais uma vez) da impermanência da vida, e a verificação trivial de todo o ser humano que foi colocado no mundo e que o seu poder de decisão em relação ao tempo tem fortes limites. Em si não seria grave. Mas é o próprio Horácio, pouco filosófico, mas nada idiota, que tem consciência do fundo deste “carpe diem”.

A exortação é convite ao roubo, à apropriação, mesmo que indevida. Apanha nas ruas os pedaços que o dia te dá, este dia. Não o segundo, que se evapora, não a semana, que é longo demais. O dia, que os romanos contam desde o cair da noite, é um convite em si mesmo ao nocturno. Cada noite que começa percebe que é mais um dia que surge para capturares. Para a caça e a pesca.

Nunca vi referido algo que para mim sempre foi evidente. A inconsistência lógica desta exortação. Em si mesma é um plano para o futuro, quando o que afirma é a recusa de quaisquer planos para o futuro.

O “carpe diem” aparece na Ode I, 11, 7-8:
dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.
(enquanto falamos eis que o tempo cioso fugiu: colhe o dia, sem te fiar em nada no dia seguinte).

Horácio conhecia a sua métrica e a semântica do latim muito melhor que nós. Não é por acaso que escolhe o verbo “carpo, is, ere, carpsi, arptum”: colher ,arrancar, separar, roer, pastar, pôr-se a caminho. É um tema que tem lados positivos, como se vê em “karpos” em grego – fruto. Mas o fruto, quando nos lembramos da sua história, é sempre algo que traz um percurso de violência. É o que é arrancado à árvore. Horácio poderia ter escolhido outro verbo. As suas capacidades métricas em nada o impediram. Se escolheu o verbo “carpo” não o fez por acaso. Salientou que a acção de colher o tempo não é a da simples recolecção, mas a de um arrancar violento.

O pensamento de Horácio não é meramente episódico. Descobre-se melhor comparando com a epode XIII. Nos seus versos 3-4:
“rapiamus, amici,
Occasionem de die”

(aproveitemos amigos a ocasião deste dia)
E na mesma epode nos seus versos 7-9:
“cetera mitte loqui: deus haec fortasse benigna
reducet in sedem uice”

(quanto ao resto, abstenhamo-nos de falar. Talvez um deus, por um generoso retorno das coisas, colocá-las-á no seu sítio.)

Mais uma vez Horácio não escolhe por acaso as palavras. “rapio, is, ere, rapui, raptum”: arrebatar, levar com violência o ímpeto, arrastar, puxar, levar alguém ao suplício, à morte, tomar, roubar, pilhar, saquear, apressar, aproveitar. Escolhe um verbo violento. O tempo não nos é dado. Apenas nos aparece por vezes à disposição. A ocasião é o que cai. O que nos cai em cima ou ao lado. É coisa cuja origem desconhecemos e de que apenas padecemos o destino.

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