quarta-feira, 16 de julho de 2008

Autópsia


Existem duas formas de presenciar uma autópsia.


Uma, visceral, com som e cheiro. Vê-se o cadaver. Morto, inchado, nú, amarelo, deitado em cima da mesa onde vai ser esquartejado. A balança para o peso dos orgãos ao fundo.

O primeiro som que se ouve é o do corte frontal, para retirar o escalpe. Ouve-se o esticão, que deixa o crânio à mostra, amarelo, sem pele, como os ovos na canja.

Serra-se, corta-se, abre-se a barriga, o cheiro de podridão solta-se por golfadas. Os orgãos são retirados, pesados, com direito a risota:"- Olha o fígado tem 1 kg, rico menino, não gostava da pinga, não senhor!".

O estômago em convulsão e a jura eterna de não mais comer costoletas, cabidela e iscas.


Há, no entanto, outra forma, muito mais civilizada. Os alunos sentados, compenetrados, enquanto lhe trazem em tabuleiros, o fígado devidamente arranjado, limpo e fatiado para cuidadosa análise: " - O que é que lhe parece?" , " - Que há indícios de que talvez houvesse algum abuso de bebidas alcoólicas, Senhor Professor."


A morte é a mesma, mas os olhos não a vêm. Não vêm o corpo, e por isso abstraiem-se dele. Não lhes é dado ver o corpo, é-lhe apenas servido o orgão, impecavelmente limpo e fatiado. Rigorosamente asséptico.


Que prefiro eu? Ver o corpo esventrado. Primeiro, porque a vontade de comer volta em 15 dias. Depois, porque é coisa que nunca se esquece, sendo que a memória é um bom bordão para avançarmos vida fora.

4 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Sofia, se não me levar a mal, eu, se tiver que vir a passar por tal experiência, prefiro fazê-lo de uma terceira forma, que no seu post não menciona, mas de algum modo pressupõe: é como autopsiado. E nesse sentido tanto me faz que me vejam inteiro, inchado e mal-cheiroso, ou devidamente limpo e desorganizado. Já quanto aos comentários, podendo escolher, preferiria não ser alvo de grandes graças. Se assim não for, porém, pois que se riam com gosto.
Já agora: de onde lhe veio esta súbita e mórbida inspiração (ou expiração)?

Sofia Rocha disse...

Gonçalo, a cadeira de medicina legal, com assistência a duas autópsias, fazia parte do curso de direito. Assisti. No entanto, confesso-lhe que é mais um exercício, pretensioso, sobre o rumo das coisas. Penso que vivemos uma contradição. Por um lado, vivemos num mundo que privilegia o espectáculo, o lado cénico das coisas.Por outro, quando é a sério, a doer, foge-se, como o diabo da cruz. Vivemos numa sociedade que não aceita a morte, a finitude, a decrepitude, o envelhecimento ou a doença, como elas são realmente. Ou só aceita, quando devidamente encenada de forma asséptica. Aposto que a cadeira de medicina legal vai saír dos cursos de direito, se é que não saíu já, para não chocar os meninos.

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Sofia, o mais extraordinário deste quadro, para mim, é o jogo de olhares entre todos os seus personagens, que olham entre si, que olham para longe, para outro lado, para fora do quadro... e um deles olha mesmo para nós, questionando-nos, justamente: para onde olhamos nós? Porque o facto é que, cheirando melhor ou pior, o ser humano tem uma enorme dificuldade em olhar para a morte...

Sofia Rocha disse...

Justamente Gonçalo. A morte. Inteira.