Obama, "Lost" e uma certa selecção de futebol
O mundo parece estar a ruir, é verdade. Em Portugal, há coisas demasiado chocantes a acontecer - a morte do camionista que tentava impedir a quebra do piquete - e o ambiente é sombrio. Talvez o mundo virtual seja isso mesmo, virtual: não vale a pena combater a realidade com estados de espírito que se evaporam entre as teclas do computador.
E no entanto: escrever sobre o que nos traz alegria e nos ilumina brevemente o quotidiano pode tornar-se tanto uma forma de reciclagem interior como de manifestação exterior de confiança noutros mundos, mais justos e harmoniosos. O que têm, então, em comum Obama, "Lost" e a selecção nacional?
Todos nos transportam para um futuro mais optimista. Obama é o mais contagiante político - e o mais brilhante orador - da política norte-americana desde JFK (bastava ouvir o discurso de confirmação definitiva como candidato democrata à Casa Branca - a CNN, que se inclina mais para Rodham Clinton do que para o senador do Illinois, falava de... Lincoln no final da sessão). Não há apenas palavras belas e magníficos aforismos na oratória de Obama. Há uma medida muito exacta de esperança - mais precisamente, o infinito - e há ideias (que se esperam agora devidamente minuciosas) sobre o sistema de saúde, a reestruturação da economia, o conflito no Iraque, o futuro do Médio Oriente e o equilíbrio social interno. "I sing the body electric", e brilha.
"Lost", a série de televisão da ilha-enigma (da qual devoro, ilha e enigma, a terceira temporada em DVD à velocidade com que Sawyer manda um piropo), é um exemplo contemporâneo da diluição das fronteiras entre o Bem e o Mal, que o proselitismo europeu nos meteu na cabeça e a Reforma não resolveu. Em "Lost", TODAS as personagens são hidras de egoísmo, raiva, despeito, ódio e contínuas hesitações de compaixão. Ao mesmo tempo, todas elas são inapelavelmente humanas, frágeis como flores de estufa em plena tempestade tropical, à procura de um sentido que, finalmente, só surge em breves manifestações de amor (seja ele fraternal, filial ou de um romantismo selvagem). Nesse processo de compreensão da natureza
da espécie, "Lost" ajuda-nos - como a melhor ficção do universo televisivo pós-moderno - a afastar preconceitos e a reconstruir as nossas formas de avaliação da diferença, de todas as diferenças, uma das chaves para construirmos um futuro melhor.
Por fim, a besta negra de muitos intelectuais portugueses, o futebol (volta Pacheco Pereira, estás perdoado). Uma das pátrias emocionais de Borges, Camilo José Cela ou Carlos Drummond de Andrade é uma das últimas manifestações razoavelmente benignas de patriotismo, e se não combate os problemas do quotidiano (o futebol é um ansiolítico, não é um anti-depressivo), ajuda a amenizar os seus efeitos. Já todos sabemos que um poema de e.e. cummings pode fazer o mesmo. Mas que verso é que me põe aos saltos em cima do sofá como se tivesse cinco anos?
Apreciem - e sorriam - enquanto dura.
1 comentários:
Pedro,
longe de mim estender um sombrio véu sobre a tua genuína alegria. Mas recordo-te que Obama não é português e, se não me engano, aponta para um recolhido isolacionismo: não é do que mais gosto na América.
E depois, "Lost" e os loucos gritos pela selecção, prazeres que partilhamos, mais o segundo do que o primeiro, são prazeres da esfera do privado (mesmo que a selecção ganhe o Euro, não me vejo na rua aos saltos, nem sequer com a perspectiva de poder abraçar moças de fartos seios), sem essa dimensão colectiva que tanto precisa de exaltação.
Seja como for, e só por causa desta tua entusiástica digressão, levanto a minha taça com um "convento da tomina", que é tinto, barato e bom.
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