Em defesa dos cabeças no ar...
Duas palavras em torno de mais esta pequena provocação do Manuel S. Fonseca, que neste seu post diz que os filósofos são, por definição, desajeitados, isto é, não são bem ao jeito deste mundo. Porque, se a verdade é que ele tem razão, a coisa tem, no entanto, que ser explicada.
A história desta ideia, tão antiga como a própria filosofia, é-nos contada por Platão, no seu diálogo Teeteto, a partir do episódio em que Tales de Mileto – normalmente considerado o primeiro filósofo –, andando a olhar para o céu, observando os astros, não viu onde punha os pés, caindo a um poço, logo provocando o riso de uma jovem e bonita (Diógenes dirá, mais tarde, que era uma velha) criada trácia. Este riso – conclui Platão – aplica-se a todos os que se dedicam à filosofia, pois que têm o corpo, apenas, na cidade, enquanto o seu espírito viaja até às profundezas das coisas.
Ora, se este riso espontâneo conhece bem a inutilidade imediata da tarefa do filósofo, que, caminhando por este mundo com os olhos postos no outro, não faz mais do que causar o riso ou a raiva dos outros homens (do que a vida – e a morte – de Sócrates em Atenas são o exemplo por excelência), o facto é que a vida presa à superfície do mundo das coisas (é o que significa a personagem da criada trácia) não tem sentido em si mesma, pelo que, perante o pressentimento da morte dado na natural corrupção dos corpos (o facto da jovem criada se ter tornado velha nas Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio é um pormenor delicioso), acontece também espontaneamente aos homens voltarem-se para os filósofos (aqui entendidos como sábios, ou homens das coisas do espírito), para que os guiem.
A tentação científica moderna de tudo constituir em problema que se possa resolver, porém, procurou elidir esta natural tensão do caminhar do ser humano (durante toda a Idade Média expressa na relação entre os poderes temporal e espiritual), fazendo com que, hoje, já não aconteça que Tales caia no poço e a criada se ria. Mas este nosso mundo, triste e uniforme, faria bem em lembrar a proposta de Platão, que, na República, desde a sua primeira página, propõe uma constante subida e descida (anábasis e katábasis) entre a sensibilidade e a inteligibilidade das coisas e das ideias, bem no meio do livro expressa pela alegoria da caverna, poço de onde Sócrates parte e ao qual regressa, correndo o risco de que se riam dele, ou de que o matem: porque, cá em baixo, precisamos de alguém que nos ajude e nos eleve; porque, também lá em cima, não podemos viver sozinhos!
3 comentários:
Gonçalo, agrada-me a associação que faz entre o comportamento lunático dos filósofos e o riso (em particular se o riso for o de uma bela criada trácia). Mas a essência do meu post, que o Gonçalo no final da sua análise bem refere, é o de contrastar um velho mundo e uma cultura em que a extensão natural do pensamento era a palavra, com um mundo e uma nova ciência em que a extensão natural do pensamento passou a ser a mão, de preferência armada de bisturi
Mesmo sabendo que o Sócrates é outro, gostei muito desta passagem "poço de onde Sócrates parte e ao qual regressa, correndo o risco de que se riam dele". Lembrou-me alguém!
Meu caro Manuel
Tem toda a razão. Mas eu não resisto às suas pequenas provocações! :)
Fazendo-lhe justiça, já reparou como a própria palavra, originariamente saída da tensão existencial concreta de um corpo e de um espírito, que a sentiam e se sentiam ao dizê-la, passou a ser demoradamente gravada na pedra, na madeira, no pergaminho, no papel... mas, para lá das diferenças, mantendo sempre uma unidade que o cinzel, a caneta e o gesto que os acompanhava reproduziam? Mas que hoje inteiramente se perdeu, porquanto escrevemos espartilhando as palavras em letras, átomos martelados por um dedo (ou mais, conforme a destreza do martelador) que poderão ou não fazer sentido? (isto é, poderão denotar um corpo sem espírito, como um espírito sem corpo... ou até um corpo e um esírito ou um não espírito e um não corpo: e tudo, claro, tendo o mesmo valor).
O essencial passou a estar nesse martelar as letras (como mostra a experiência que vemos fazer-se das mensagens dos telemóveis) e não na palavra e no gesto. É, como você bem dizia, a vitória da técnica sobre a arte, da manipulação sobre a cultura.
Minha querida Redonda
Evidentemente o Sócrates é outro. Ainda assim, devemos notar, para já, uma coincidência entre ambos: É que se o Sócrates grego deu a sua vida por Atenas, preferindo morrer nela a fugir para outro lugar... o Sócrates português, e apesar das dificuldades, também se mantém em Portugal, ao contrário dos tristes exemplos dos seus predecessores António Guterres e José Manuel Barroso... Chamando a atenção ao meu prudente "para já", julgo que isto se deve realçar.
O Sócrates português é, digamos assim, como o Schrek: gosta do pântano - e por isso deve ser louvado - ainda que não o queira verdadeiramente transformar - e por isso deve ser criticado.
No entanto, fica no pântano, sem fugir para outros lugares. Ora, evidentemente esperando por melhores líderes, julgo que isto se deve valorizar! :)
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