sábado, 28 de junho de 2008

Dois mundos














Suprema ironia: hoje, a CGTP organizou uma manifestação contra a política laboral do governo. Foi no Largo Camões, em Lisboa. A dois passos, no Palácio de Santa Catarina, filmavam-se cenas da "Vida Privada de Salazar".
Nem o cinéfilo Salazar deu pelos manifestantes, nem os manifestantes por Salazar. Mesmo que sejam paralelos "amigos do povo", há mundos que nunca se encontram.

11 comentários:

Sofia Rocha disse...

" Vida privada de ..." é assim um título um bocadinho assustador, não é? É quase forçoso pedir desculpa quando nos sentamos e pagamos bilhete " - Olhe se faz favor desculpe-me lá, sentei-me aqui só para vir espiolhar a sua vida, se não se importa..."

Manuel S. Fonseca disse...

Sofia, sou parte interessada, hèlas! E permito-me timidamente acrescentar que não foi disso que falei, mas tão só duma ironia que me pareceu (como sempre me parece a ideia de existirem antípodas) quase comovente.
Tudo o que eu diga, a partir de agora, é parcial. E é claro (para mim), que não é pelo voyeurismo que esta "Vida Privada" conta, mas sim pelo valor psicológico, filosófico e político que encerra. Cabe-me o ónus da prova. Daqui a pouco meses, peço-lhe que seja implacável na análise.

Sofia Rocha disse...

Quando o li pensei mesmo que talvez fosse parte interessada e por isso o piquei um bocadinho... é óbvio que lá estarei!
Quanto a ser implacável, não me parece. Guardo essa conduta para as coisas importantes, para a defesa daquilo em que acredito. No resto, não me presto a exercícios de maldade. Quanto ao filme, farei como faço em geral: digo a uma amiga que está muito bonita se for o caso, mas jamais lhe direi "- Está mais gorda!". De modo que se me vir calada, é porque não gostei... - by the way, uma mulher sabe sempre quando está mais gorda, não precisa que lho lembrem...

Manuel S. Fonseca disse...

Espero que, por uma vez, este filme (na verdade, uma mini-série que poderá ver em doméstico recato) faça parte "das coisas importantes" da sua vida, daquelas que, Sofia, exigem implacável defesa ou implacável ataque. Se não, para que é que vale a pena fazer filmes?
Acabei agora, em post provocado por post do João Luis Ferreira, de fazer a ontológica defesa das "artes" recusando que as remetam ao papel de comentário, de reflexo ou de acessório decorativo. Levo nisto quase meio-século (dos musseques de Luanda às Avenidas Novas de Lisboa); já ninguém me convencerá do contrário.
Tirando o Benfica, esta é uma das minhas raras (e públicas) obsessões. Guardo as privadas para a sequela que um dia alguém, gentilmente e por manifesta compaixão, me venha a pedir.

Sofia Rocha disse...

Como é que eu poderia ser implacável face a uma indústria que considero indispensável? Defendo que Portugal tenha uma indústria que produza filmes, séries, que empreguem autores, realizadores, actores, e todos os outros profissionais. Conteúdos que falem português nos cinemas e nas televisões ( como em espanha , por ex.). Até ao dia, que de tanto fazermos,tenhamos obras muito consistentes. Agora vou ser implacável: para o que me falta a paciência é para aquela visão pseudo-intelectual daqueles que acham que, desde que não seja João César Monteiro ou Manuel de Oliveira, é tudo mau...

João Luís Ferreira disse...

Sem me querer meter mas metendo, uma vez que fui citado, queria esclarecer ao Manuel que no meu post as artes não estão reduzidas ao comentário. O que eu disse, mas se calhar não me fiz entender, foi que há um inevitável recurso à abstracção na arquitectura e na música que nas outras artes não é inevitável e quis significar com abstracção precisamente a relação de elementos que não estão evidentes no mundo ou na natureza. Não disse que as outras artes não eram passíveis de abstracção. Muito menos que as outras artes sejam apenas decorativas.
Quanto ao Benfica penso que o Manuel é sempre de uma irrefutável lucidez.
Já agora, Sofia, o que é que é considerar ser indispensável haver uma indústria cinematográfica? O Estado abrir escolas, os estudantes serem obrigados a optar por tirar cursos de cinema, ou deixar que haja a liberdade de quem quiser abrir escolas, criar clubes sem tornar o assunto num problema de Estado e de cotas?

Sofia Rocha disse...

Olá, João Luís. Quando digo uma indústria, digo uma actividade económica privada descomplexada que produz conteúdos para o grande público, e de onde o Estado está geralmente arredado. Indústria que ao produzir com lucro poderá de vez em quando dar origem a boas obras. Porque estas não nascem de geração espontânea. Parece-me que em Portugal ainda existe aquele complexo (de esquerda)que acha que só se pode gastar película com filmes que discutam as grandes questões ontológicas ou epistemológicas da humanidade em geral...nem vai ser preciso esperar muito para constatarmos que filmes sobre Amália ou Salazar vão ser destroçados pela crítica nacional, enquanto o público enche salas de cinema. E eu, como portuguesa, prefiro que a maioria daqueles que paga bilhete, e geralmente não vai à cinemateca, o faça para ir ver um filme português - pipocas incluídas.

João Luís Ferreira disse...

Sofia,
O que é verdadeiramente importante não é se o público é este ou aquele, se é de esquerda ou de direita, se é português ou estrangeiro. A cultura de estrangeirados que domina Portugal há dois séculos, os reflexos do domínio da universidade pela esquerda e o não reconhecimento do que não é institucional que é uma forma de limitação da liberdade individual, ou a ideia de defender uma cultura das outras, são atavismos que, espero, o tempo venha a dissolver.
Em geral, só se defende o que está morto ou em vias de extinção. Mas o que está morto ou em vias de extinção não se defende por decreto. Só a liberdade alimenta o engenho, só a consciência da liberdade é que pode acabar com o sentimento de menoridade com que os portugueses vivem perante tudo o que vem de fora. Se tiver de haver um cinema, uma arquitectura ou uma literatura portuguesas que não seja por isso de serem portuguesas mas porque são manifestações que interrogam e intervêm na história do mundo e não sejam um consolo do género — nós afinal também somos capazes. Se resultar da actividade criativa dos portugueses uma característica identificável com o ser português, óptimo, não podemos é actuar como se possuíssemos um segredo que não possuímos e o quiséssemos impor aos outros à viva força.
Tudo depende de haver quem faça, de haver quem crie, de haver quem se arrisque. Esse não pode é lutar contra a poderosa organização do Estado e do seu aliado cultural tradicional, a Universidade, na escolha do que se faz, de quem faz, de como faz. Há muitas formas de limitar a iniciativa dos indivíduos. Uma delas é a organização da cultura e do seu sistema de legitimação.

Sofia Rocha disse...

Já vamos no nono comentário, vai toda a gente pensar que isto parece a guerra entre o VPV e o MST...este vai ser por isso o meu último.
Só duas notas. A primeira sobre o atavismo. Eu sou atávica quando defendo que existe uma identidade nacional que é feita de séculos de expansão e mar que abrange o território e os PALOP, que olha para os africanos e brasileiros como povos irmãos. Sou atávica quando acho bem que os espanhóis promovam ferozmente a sua economia e a sua língua. Sou atávica quando no Algarve encontro aldeamentos turísticos onde não há escritos em português. Quanto ao atavismo e à globalização, acho curioso que quando passeio em Londres, cidade global e cosmopolita, os locais nem sequer me olham nos olhos, os únicos que o fazem são indianos e africanos.
A segunda nota, quanto a haver refexos disso - ou dessa identidade - na arte é um grande equívoco. Seria como dizer, como faz Miguel Sousa Tavares, que as mulheres só poderiam participar na política se fossem ( moral e tecnicamente) superiores ao homem. Por último, não vem mal ao mundo que se vá ver " O crime do Padre Amaro". Desde que se não esteja a pensar que se vai ver o "Sunset Boulevard" e que saia de lá a escrever que aquilo afinal não é uma obra-prima. Porque não é.

João Luís Ferreira disse...

E quem era quem?

Manuel S. Fonseca disse...

Sofia e João, peço desculpa pela deselegante ausência neste debate que, em certa medida, desencadeei. Passei a tarde mergulhado na preparação de um festim: fiz pimentos marinados, beringelas no forno, batatas cozidas com raminhos de tomilho e por aí adiante. Também preparei os queijos e abri o vinho. A noite foi de degustação, Espanha-Alemanha, e uma inconclusiva e frustrante algazarra comparando Sócrates e Zapatero.
Chego atrasado à vossa conversa. Mas fico satisfeito se disser ao João Luís que mesmo antes desta nossa troca de comentários, já pensava que ele tinha a visão da autonomia das artes que agora ambos explicitámos, como também acho que ele tem razão ao referir a relação das artes narrativas (literatura, cinema, teatro, fotografia) ao mundo e à natureza.
À Sofia, e sem prejuízo da minha real estima por Oliveira e João César, gostaria de a satisfazer demonstrando, daqui a poucos meses, que é possível cumprir-se o seu desiderato de uma produção cinematográfica nacional não dependente de subsídios a fundo perdido. Uma produção que crie narrativas com encanto, que gerem identidade local e aspirem a uma leitura mais universal. Acredito eu e acreditam um signficativo conjunto de pessoas, de empresas e entidades. Dizê-lo é irrelevante: ou fazemos ou não fazemos. Daqui a meio ano, voltaremos a falar do assunto.