sábado, 7 de junho de 2008

A Aventura

Há por aí, nos “blogs”, alguém que se lembre de quem era Antonioni? Os frequentadores da Cinemateca – contam-se, é claro, pelos dedos de duas mãos – lembram-se de certeza. E, com sorte, lembram-se também os que, inspirados pelo pelo eterno feminino, ainda guardam, e sempre vão guardar, naqueles olhos que a terra há-de comer, a silhueta da mais sofisticada e nórdica das italianas, Monica Vitti.
Michelangelo Antonioni e Monica Vitti encontraram-se pela primeira vez num filme perturbante, austero e escasso que deu pelo nome de “L’Avventura”. Preto e branco, franciscanamente financiado, quanto mais não fosse porque o realizador se limitava a dizer aos produtores que era a história de uma rapariga que desaparecia numa ilha desabitada e que nunca mais ninguém encontrava.
A mais bela história da rodagem, onde não é descabido aludir, para estar de acordo com o espírito de Antonioni, ao Mito, ao Mistério e ao Eterno, aconteceu em Lisca Bianca – a tal ilha deserta – quando, no horizonte, a alguns quilómetros, surgiu uma tromba marinha, uma espécie de gigantesco cone invertido. Lá vinha ele, ameaçador, em direcção a Lisca Bianca. O cineasta decidiu incorporar a “aparição” no filme e estava disposto a tudo (danassem-se céus e infernos) para ter a imagem mais próxima que pudesse.
Mas a bela Vitti de olhos azuis, quando a população local que trabalhava na equipa lhe disse que se a tromba ali chegasse os poderia arrastar a todos, entrou em pânico. “E che si fa?” perguntou. Um dos homens, Bartolo, tinha dons e sabia la parola, uma reza ritual que poderia atalhar a tromba marinha. Vitti implorou-lhe que usasse os seus dons. E conta a esplendorosa e tremente Monica Vitti: “Ele olhou-me, seriíssimo, depois, levantou a perna esquerda e cruzou-a com a direita, fez o sinal da cruz, murmurou a fórmula e, acreditem ou não, a tromba desapareceu. Michelangelo, que era céptico quanto aos poderes de Bartolo, começou a atirar-se a ele, a insultá-lo e a ameaçá-lo de despedimento”.
Serve o vídeo abaixo para que recordem a "incomunicável" beleza desse filme que foi o primeiro da famosa "trilogia da doença dos sentimentos" - "L'Avventura, La Notte, L'Eclisse - que Antonioni assinou.

5 comentários:

Sofia Rocha disse...

Num qualquer hotel, não me lembro qual,há uns tempos, não me lembro quanto,há mais de um ano, vi um documentário não sei se num canal português ou italiano. Lembro-me que a fazer zapping, parei na imagem de um senhor, vestido como um senhor, comportado como um senhor, cabelo branco penteado para trás, óculos de massa preta, de blazer, perna traçada, com um ar perene debaixo de um grande guarda sol, rodeado por uma inegável luz mediterrânica. Claramente anos setenta. Fiquei ali de imediato. A sonoridade cantada de um italiano perfeitamente articulado prendeu-me ao ecrã. Falava sobre a actriz, e da sua absoluta versatilidade que lhe permitia fazer drama e comédia. Gostava da obra, fiquei rendida ao seu autor. Nesses casos percebemos que a singularidade da obra só é possível pela singularidade da personalidade que lhe deu corpo. Muitas vezes, ao ver estes filmes, fico com a sensação, de que as actrizes se tornam verdadeiramente ícones, de beleza e erotismo, quando filmadas por notórios misóginos...

Madalena Lello disse...

Num destes dias, integrado no “Ciclo anos 60”, que a Cinemateca iniciou em Maio e continua neste mês, o filme “A Aventura” esgotou a sala grande, num final de dia de semana, surpreende? Não sei o total de lugares da sala Dr. Félix Ribeiro para fazer contas e dizer quantas mãos davam…
Não me canso de ver “A Aventura”, não me canso de ver essas enormes imagens a preto e branco de um grupo que ao pisar uma ilha no mediterrâneo se separa, se espalha se deita ao sol, discute. Em fotografia, imagens semelhantes, só encontro em Atlantic City, 1977, de Bruce Cratsley, um mundo onde os acontecimentos são periféricos e o centro está vazio, um universo infinito, um universo de mistério… (pena os comentadores dos blogues não poderem ilustrar).
Custa a entender os receios dos produtores em relação “A Aventura”, onde uma mulher, que julgamos a heroína, desaparece e nunca mais é encontrada. Receavam uma história sem história? Quando o centro se esvazia, o desconforto, a frustração invade…mas Sandro e Cláudia (a “esplendorosa” Mónica Vitti), para onde o filme se desviou, não nos empurram para outra aventura e outra e outra…? Que receavam os produtores?
E de tanto receio as filmagens acabaram por se realizar no Inverno, e se o Manuel nos conta “a mais bela história da rodagem”, que não pode estar mais “de acordo com o espírito de Antonioni, ao Mito, ao Mistério e ao Eterno…”, para Vitti a mais terrível história da rodagem, terá sido a de ter de mergulhar em águas geladas que a levaram a uns meses na cama.
E já agora aproveito para lhe perguntar, o M.S.Fonseca, que assina algumas das folhas de crítica distribuídas na Cinemateca é o Manuel S. Fonseca da geração de 60? Estou quase certa que não é, mas…

Manuel S. Fonseca disse...

Cara Madalena, por estranho que lhe pareça, para efeitos fiscais e de censo, Manuel S. Fonseca e M.S. Fonseca são a mesma pessoa. Aliás parte dessa "folha" que leu na sessão a que assistiu (e que escrevi em 1985), foi replicada neste post.
Agora, em boa verdade não sei se esse M.S. e este Manuel S. são, de facto, a mesma pessoa: separam-nos 20 anos de alegrias e tristezas, de esperanças e frustrações, de inocência e experiência. Alguma coisa mudou, alguma coisa terá ficado.
Ficou, por exemplo, a memória de ter recebido em Lisboa Antonioni, e de ele ter tido a bonomia suficiente par apostar comigo que a Sampdoria, de que ele clamava ser adepto, eliminaria o então ainda grande Benfica. Qual mistério, qual Oberwald, fomos lá ganhar 2-1 e tive direito a fax de reconhecimento.

João Luís Ferreira disse...

Caros Madalena e Manuel,
Concordo com o espanto da Madalena, também lá estive nessa terça-feira ao fim da tarde na Cinemateca e dias antes tinha-me já espantado com a sala muito concorrida para um Bergman relativamente desconhecido — A Marquesa de Sade (texto de Mishima) — também ao fim da tarde. Os comentários da Madalena às cautelas dos produtores talvez se justificassem, ainda segundo o Manuel não sei se nessa folha se na folha de O Deserto Vermelho de Antonioni, pela ausência de um guião e, por isso, pela situação de reféns em que poderiam ficar sem poderem, objectivamente, controlar o processo da produção, a previsão dos custos e a receptividade das obras. Felizmente os filmes fizeram-se. Não sei se tiveram o sucesso que os produtores esperavam. Mas ao fim da tarde em Lisboa, em solarengos dias de Maio foi possível voltar a ver essas e outras obras com salas muito concorridas.
Pergunto-me se aquilo que gosto nesses filmes, a liberdade de ir indo por onde a história for acontecendo (o furacão que se desenhou nos céus foi um feliz directo), essa detenção do olhar sem os fins que a produção desejaria, essa construção da história a partir de uma direcção de actores feita de perspicácia e sentido poético, e um tempo que se demora, resiste e nos envolve quase fisicamente, ainda interessará a mais alguém além dos que aparecem nas salas nesses dias isolados e dispersos. Pergunto-me se teria sempre público se passasse nos circuitos comerciais.
É que não foram os filmes que se dataram, são os públicos que se tornaram impacientes e, sem esperança, não encontram nos valores poéticos uma satisfação para as suas almas.

Táxi Pluvioso disse...

E Dino Risi morreu há dias.