segunda-feira, 26 de maio de 2008

O zero de Gwalior



Ao contrário de outros membros do blogue, (ainda) não fui à Índia. Mas quando for, gostava de não perder Gwalior - por uma questão de zeros.

Gwalior é uma cidade antiga encravada no norte do estado do Madhya Pradesh, quase no ponto de confluência de três estados: o Rajastão, Uttar Pradesh e o Madhya Pradesh, um pouco a sul de Agra (famosa pelo Taj Mahal). Parece não ser muito conhecida fora da Índia. E no entanto é em Gwalior que se encontra uma peça científica de interesse extraordinário. Não num museu, não em representações, mas exposta ao ar livre: o primeiro zero (ou melhor, "0") de que há registo na história de humanidade.

A cidade de Gwalior tem um centro histórico antigo, rodeado por uma fortaleza medieval (do século XV). A fortaleza rodeia um templo muito mais antigo dedicado a Vishnu, chamado Templo de Chatur-bhuja ("do deus dos quatro braços", como ele está representado).

O que vou relatar foi aparentemente conhecido apenas aquando da tomada de Gwalior pelos britânicos, em meados do século XIX. Na câmara do lado direito da estátua de Vishnu está uma placa com a dedicação do templo, datada do ano de 876, que reproduzo parcialmente acima. Começa: "Om. Adoração a Vishnu! No ano de 933, no segundo dia da metade brilhante do mês de Magda (...) a cidade ofereceu ao templo (...) um terreno de 270 hastas de comprimento e 187 hastas de largura (...)"

Eu não sei quanto quanto media uma hasta, nem sei ler hindu do ano 876. Mas ao olhar para a fotografia da placa em questão, tive um calafrio. Olhem bem para a 2ª linha. Esse pedaço está recortado do lado direito a vermelho. O que é que lá está escrito, com caracteres reconhecíveis do século XXI?

"270"!

Esta é uma peça de arqueologia científica extraordinária. É o primeiro registo conhecido do "zero" enquanto algarismo de numeração posicional. E é extraordinário como quer a notação aritmética quer os próprios símbolos para os algarismos (há mais números na placa) são praticamente idênticos aos que usamos hoje, de tal forma que olhando para a placa se conseguem reconhecer... os algarismos.

A história do zero é frequentemente mal entendida por quem fala sobre ela: é um mito urbano dizer que foram os árabes ou indianos a "inventar" o zero. Não usar um símbolo para zero, como os romanos faziam, não significa que desconhecessem o conceito (pelo contrário: é impossível realizar os complexos cálculos astronómicos necessários para construir um calendário sem conhecer o zero!). Eles não usavam, no entanto, numeração posicional, e portanto não utilizavam um símbolo para o zero.

Pelos poucos registos que existem, a numeração posicional terá sido inventada pelos babilónios, utilizada pelos astrónomos da Alexandria grega e transportada para a Índia. Nos séculos que passaram transformou-se de tecnologia ao alcance de uma elite superiormente instruída em ferramenta disseminada pelo povo, juntamente com a base decimal (provavelmente porque, com dez dedos, o ser humano tem mais facilidade em contar em base dez - se tivéssemos doze dedos provavelmente utilizaríamos base 12).

E, pelos vistos, em 876 tudo isto já estava tão disseminado na Índia profunda como a escrita. É assim que aparece o zero de Gwailior. Quem soubesse ler também já sabia ler números em notação decimal. O zero já é uma descoberta democratizada.

Mais ou menos na altura do zero de Gwailior, os árabes dão-se conta da revolução tecnológica que é a numeração decimal e adoptam-na. Na Europa, este processo demorará séculos; ainda hoje lhe chamamos "numeração árabe" porque foram os árabes que a introduziram ("algarismo" é uma corruptela do nome do matemático árabe Al-Khwarizmi, um dos responsáveis por este processo).

Mas não foram eles que a criaram. É arrepiante olhar para a placa de Gwalior e reconhecer os números tal como os escrevemos.

Até o zero.



2 comentários:

Unknown disse...

Muito interessante! Por estas e por outras se vê a universalidade da matemática.

MFerrer disse...

Fascinante.
E pensar que a Europa passou mil anos convencida da sua superioridade intelectual, religiosa e científica.
Mil?
Talvez mais.
MFerrer